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Uma espécie de perda

Uma espécie de perda

Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados, gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissémos. Fizémos. E estendemos sempre a mão.

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,

(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.

Não te perdi a ti,
perdi o mundo.

{Ingeborg Bachmann}, “O tempo aprazado”

Poesia

     ”A poesia tem um papel na cultura, como a matemática e a música. Ela estabelece talvez um plano original no mundo do pensamento e imaginação, plano de síntese das forças espirituais, ponto onde todos os trabalhos do homem, o seu esforço e história, se unificam no súbito conhecimento de uma grande realidade: a vida do ser humano sobre a terra. Considero que todas as formas expressas da imaginação se concluem na verdade poética. O teorema de Pitágoras, a invenção da roda e do parafuso, a descoberta do arado, a ideia da igualdade dos homens, as astronaves, a arquitetura funcional, a revolta contra os tiranos – tudo isso em que a civilização se aplicou, e foi e é um degrau imaginado no percurso para um tempo melhor, encontra a sua beleza ao atingir o poema. E o ofício daqueles que procuram revelar aos homens a beleza dos seus próprios atos não pode ser inútil, porque talvez se não lutasse tão ardente e pertinazmente, se não se possuísse a consciência da beleza da luta. É este papel que, quanto a mim, se destina à poesia. Assim, ela liga-se à história, reflete-a na sua forma pura, fulminante.”

{Herberto Helder}
Extrato do artigo Ofício de Poeta, publicado na Revista êxodo – Coimbra 1961.