No dia 11 de junho, o professor da Faculdade Católica de Pouso Alegre, Pe. Daniel Santini Rodrigues, defendeu sua dissertação de Mestrado, na Universidade São Francisco, campus de Itatiba (SP). A pesquisa tem como tema “A Filosofia no Ensino Médio: aspectos discursivos nos documentos oficiais”. A defesa ocorreu às 9h. A comunidade acadêmica da Faculdade Católica parabeniza o novo mestre.
]]>Palavras-chave: Sofistas. Origem da Pedagogia. Educação na Grécia antiga.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
JAEGER, W. Os Sofistas. In: Paidéia: a formação do homem grego. Tradução Artur M. Parreira. Lisboa: Aster, 1979. pp. 311-354.
]]>REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 17. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
]]>REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ECO, Umberto. Muito além da Internet. Folha de São Paulo. Caderno Mais. p. 4-10, 14 de dezembro de 2003.
]]>[...] essa fronteira está sendo posta abaixo por uma farta quantidade de estudos em laboratório cujo objetivo é usar as ferramentas da ciência tradicional para explicar mistérios religiosos ou procurar por Deus dentro do cérebro humano. São desse último tipo as pesquisas realizadas em cerca de trinta faculdades de medicina dos Estados Unidos, entre elas as de universidades famosas como Colúmbia, Duke, Harvard e Georgetown. Seus cientistas tentam entender como – e se – a fé e condutas baseadas nos princípios de solidariedade, perdão e bondade influenciam a cura de doenças e contribuem para o bem-estar das pessoas. Outras instituições, como o Centro de Teologia e Ciências Naturais, na Califórnia, trabalham com o objetivo de encontrar na cosmologia e na física argumentos que fundamentem a origem divina da criação do universo. [VEJA, 2001].
O artigo diz ainda, que muitas entidades norteamericanas têm tido grande interesse nessas pesquisas, como é o caso da John Templeton Foundation, que, só no ano 2000 gastou 40 milhões de dólares financiando estudos interdisciplinares de religião e ciência. Essa e outras empresas, segundo a revista, “[...] estão ajudando a desenvolver uma nova linha de pesquisa, a neuroteologia. O objetivo dela é a busca das marcas neurológicas deixadas por experiências místicas e espirituais” [VEJA, 2001]. Mas, até que ponto se pode fazer teologia com os instrumentos da ciência? Questão controvertida que põe ainda mais lenha na fogueira sempre acesa das idéias. Positivo ou não, o fato é que há verdadeira aproximação entre o pensamento religioso e a razão científica em nossos dias. Mas não sem sofrimentos e protestos. Darwin, no século XIX, com sua explicação sobre a origem e evolução das espécies, tornou-se o “Copérnico da Biologia”, e provocou uma verdadeira revolução na maneira de o homem se relacionar com Deus e consigo mesmo, o que não agradou a muita gente, como salienta Küng (1979, p. 473):
Es innecesario detallar cómo cristianos, teólogos y dignatarios conservadores de procedencia anglicana, protestante y católica protestan y actúan contra la nueva doctrina [de Darwin], claramente contraria a al Biblia y la tradición. Análogamente a lo que había ocurrido con la nueva física y astronomía, una vez más se volvió a identificar el mensaje bíblico con una determinada teoría científica y desde la supuestamente segura roca de la fe bíblica o tradicional, se presentó batalla contra el pernicioso “evolucionismo” y a favor de un “fixismo” congruente con la Biblia y la tradición. […] Y si en el campo biológico todas las formas evolucionan, de esta manera y dan lugar continuamente a nuevas formas, ¿no vale lo mismo también en el campo espiritual y social para todas las ideas humanas, instituciones, organizaciones y estructuras […]? La Iglesia y la teología cristiana, ante esta nueva situación, ¿no tendrá que dar por terminado su papel?
Vemos mais um capítulo do dilema antigo entre a teoria do devir de Eráclito e a teoria do ser imutável de Parmênides, neste caso, aplicadas ao pensamento humano. Afinal, evolui ou não evolui? Muda ou não muda? O autor nos esclarece que as idéias darwinistas foram adotadas por quase todos os biólogos ainda em seu tempo, sendo ajustadas em apenas alguns pontos. O debate teológico, porém, continuou acirrado ainda por muito tempo na Europa. Darwin foi acusado de ateísmo, embora nunca o tivesse sido. Muitos de seus seguidores, contudo, vão esposar um ateísmo ou o panteísmo, contra o dualismo cristão. Desse modo, Darwin, sem querer, terminou por estabelecer também um fundamentalismo científico. Época de autoritarismos dogmáticos. Se não religiosos, científicos. Hoje, em plena pós-modernidade a evolução das idéias – e das ciências – segue seu curso acidentado, e, como no passado, não deixa de se esbarrar com fundamentalismos de toda espécie.
A evolução é um fato. Ora, percebemo-la na mente humana, na maneira de apreender o mundo, no pensamento e comportamento das crianças, na maneira de os indivíduos se relacionarem em sociedade. A ciência, na medida em que descobre e inventa, influencia nesse processo. A fé, por outro lado, procura dar respostas para o que não se compreende, muitas vezes estabelecendo dogmas incompatíveis com a razão. O problema maior ocorre quando esses pontos de vista são impostos aos outros: nasce o fanatismo que sempre se baseia na ignorância e na visão unilateral estacionária dos conteúdos da fé. Fanatismo é o que faz um indivíduo ou um grupo, além de morrer por uma idéia, passar a matar por ela. E a morte da consciência, da razão que faz o homem ser homem, é a primeira que se verifica neste processo. É preciso que se compreenda que, quando um texto religioso foi escrito, havia uma outra concepção de mundo, uma outra realidade social, de modo que essa produção tem seu significado ligado ao contexto em que nasceu. Com o tempo, deve haver uma adaptação aos novos contextos das sociedades e das mentes dos homens, uma ressignificação de acordo com o momento presente. Isso não significa o abandono de valores. Ora, se a sociedade muda, seus valores sofrem também alterações que acompanham a evolução dos indivíduos. Ocorre, porém, que a evolução moral da consciência se faz de modo mais lento do que a sua evolução intelectual. Alguns poderão dizer que as sociedades do passado eram mais organizadas e moralmente melhores do que as de hoje. Não entendemos assim. No passado, apenas as convenções, fundadas e mantidas pelo autoritarismo, eram preservadas por máscaras sociais que encobriam desastres morais e, muitas vezes, provocava esses mesmos desastres. Hoje, o que ocorre é a quebra das convenções e a queda das máscaras, de modo que se torna público o que antes era impensável.
Por seu lado, a ciência, que tem como objeto apenas elementos do mundo sensível, material, não atua somente neste âmbito, uma vez que seus resultados provocam mudanças na maneira de os homens verem a realidade, pensarem e agirem individual e coletivamente. Em outras palavras, o desenvolvimento científico, mesmo que materialista, provoca uma mudança na ética humana e na sua relação com o divino. Mas sempre haverá questões que a ciência não responde, até porque, à medida que algumas são respondidas, outras tantas surgem, como fruto da própria evolução do intelecto humano. O ser humano, animal que possui o logos, deve, portanto, evoluir mentalmente, espiritualmente, sem, contudo, deixar de acompanhar a evolução do mundo material no qual se insere. Evolui-se em duas vertentes: no plano físico, como animal, trazendo os traços de todo o processo evolutivo ocorrido durante as eras, e como intelecto, através das experiências vividas pelo indivíduo e pela coletividade no ajustamento de sua condição íntima (moral), ou, se desejar, no conhecimento da verdade (verdade esta que inclui o conhecimento da divindade). Desse modo, a evolução moral do homem não é só uma questão de evolução intelectiva, mas depende em grande parte desse desenvolvimento. Considerando dessa forma, a ciência pode abalar a fé somente se consideramos a fé dogmática, intransigente, fundamentalista, uma vez que esta se baseia no desconhecimento (não saber) e na ignorância (não querer saber). A evolução representa justamente a destruição da ignorância, pelo conhecimento do real e pelo aclaramento da própria noção de realidade transcendente. Por outro lado, a fé que raciocina, que tem razão, que busca o “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, e não o dos filósofos e sábios” como colocado por Pascal em relato de usa experiência mística, o Deus acima das crenças, das crendices e dos dogmas irracionais, é uma fé sadia, aberta às descobertas da mente, e que não se sente ameaçada por essas mesmas descobertas.
Ora, a evolução se faz pela descoberta do que já existe e sempre existiu. A descoberta apenas alarga a visão do homem, a sua consciência. Conhecendo a realidade, o homem entende melhor a si mesmo e, com isso, adquire uma liberdade cada vez maior. Liberdade, bem entendido, a que vem acompanhada da responsabilidade: conhecimento, liberdade e responsabilidade não podem não andar juntos, sob pena de a liberdade descambar para a libertinagem, que é o que vem ocorrendo na contemporaneidade, sobretudo com a pretensa morte da metafísica. O alargamento do campo de visão proporciona ao homem o entendimento do peso das suas ações, ou seja, estimula a reflexão ética. As relações entre os indivíduos passam então a ser reguladas de acordo com esses novos paradigmas.
A liberdade de consciência, que traz a responsabilidade, não é bem vista pelos sistemas religiosos fundamentalistas que não raro se constituem como entidades de poder, de mando e de domínio. Esses sistemas sentem-se ameaçados diante pela liberdade do indivíduo que passa a interpretar Deus sem precisar de um intermediário. Isso porque o fundamentalismo se baseia na imposição ao outro de uma forma estática de pensar, o que significa a anulação do logos desse outro, de sua capacidade de pensar e, com isso, de ser humano. Quando o indivíduo pensa, conhece e, conhecendo, tem condição de “sair da Matrix” do obscurantismo e da ignorância, e assume uma postura crítica diante dos fatos que lhe dizem respeito. Aprende a pensar por si mesmo. À primeira vista, parece individualismo, mas não é. Individualismo (ou egoísmo) é libertinagem e não liberdade; implica em fazer a própria vontade sem levar em conta o bem da coletividade. Pensar por si mesmo é fazer uso da razão para conhecer e transformar para melhor, colocando em prática a ética no meio social. Por isso se diz que o indivíduo evolui intelectualmente e moralmente, de modo que um aspecto não pode caminhar sem o outro. Há, porém, aqueles que se comprazem em manter as aparências e a imutabilidade de idéias que lhe são caras ou por ignorância e comodismo, ou por interesses escusos. É precisamente isso que a Alegoria da Caverna, de Platão, nos mostra.
Tirar o homem do centro do universo, depois fazer com que seja criado à imagem e semelhança dos animais foi um choque muito grande no orgulho da humanidade. E não poderia ser de outra forma: o conhecimento deve servir, antes de tudo, para tornar o homem humilde. Com a evolução do pensamento o homem conhece melhor o seu lugar na realidade que o cerca. Isso é uma lição para a humanidade e em nada desmerece a sua existência. O conhecimento proporciona a quebra do atavismo secular do pensamento dogmático. O que não se pode fazer é trocar um fundamentalismo por outro, ou seja, passar de um fundamentalismo religioso a outro, científico, materialista e ateu. Corre-se esse risco especialmente quando a religião e a ciência se misturam com a política. Nenhum extremo está com a razão, a ciência não consegue explicar tudo porque estamos em um processo contínuo de desenvolvimento, de modo que novas questões surgem ao se resolverem as velhas questões. Deve-se ter em mente que não podemos ter neste mundo o conhecimento total da verdade, e, sendo assim, o que melhor se pode fazer é investigar cientificamente e, ao mesmo tempo, manter uma fé racionalizada e consciente de que a divindade está acima das instituições humanas.
KÜNG, Hans. ¿Existe Dios?: respuesta al problema de Dios en nuestro tiempo. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1979.
TEICH, Daniel Hessel. Em busca de Deus. Veja on-line, Ed. nº 1703, 6 jun. 2001. Disponível em:
O texto que segue é a resenha crítica do artigo Sobre as críticas ao cristianismo e à cristandade em Nietzsche e em Kierkegaard, de Álvaro Valls, publicado na revista Síntese, em 2007. Álvaro L. M. Valls nasceu em Porto Alegre em 1947. Possui graduação em Filosofia na Faculdade Nossa Sra. Medianeira (1971) em São Paulo, Mestrado na Universitat Heidelberg (Alemanha, 1977) e doutorado na mesma universidade. Professor Adjunto aposentado de Filosofia da UFRGS, atualmente é professor titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: Kierkegaard, socratismo, filosofia dinamarquesa, ética, Nietzsche e ironia. Já publicou artigos sobre temas filosóficos e educacionais. Em seu texto, o autor fala dos pontos comuns entre as críticas que Nietzsche e Kierkegaard fazem à cristandade, afirmando que, por bases diferentes, ambos os filósofos condenam o que chamaram de falso cristianismo.
O século XIX foi o século das críticas à religião: herdeiros do Iluminismo, os autores desse período – notadamente Marx, Freud e Nietzsche – foram as raízes do niilismo do século XX. Contudo, menos conhecida, mas não menos áspera é a crítica do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard à prática religiosa comum em seu tempo e que, na sua visão, não correspondia aos ditames do Cristo. Segundo Valls, os irônicos ataques do filósofo à cristandade podem ser vistos até mesmo como mais ferozes do que os nietzschianos.
A leitura de A Essência do Cristianismo de Feuerbach inspira Kierkegaard a escrever O conceito de angústia e Migalhas filosóficas. Neste último, um “diálogo” com o texto do filósofo alemão, Kierkegaard, tomando como modelo o cristianismo, analisa os conceitos de verdade e história. Segundo Silva (2010, p. 2),
Nesta obra, Kierkegaard começa a esboçar sua severa crítica ao cristianismo e a Igreja dinamarquesa de sua época. Para ele, os pastores e teólogos não sabiam o que significava ser cristão ao passo que o autor escandalizado sabia muito bem sobre aquilo se colocava contra. Tal crítica vai alcançar um tom polêmico e marcadamente satírico nos fascículos que ele mesmo editou em 1855 denominados de O instante. Nestes, há também a influência da análise Feuerbachiana acerca da essência do cristianismo, que se tornará fundamental para Kierkegaard definir a autenticidade do ser cristão.
Para Feuerbach a religião se faz nas relações humanas. Kierkegaard respeita a religião e justamente por isso se propõe a tarefa de redescobrir a original essência dos conceitos do cristianismo, desmascarando as práticas que eram tidas como cristãs em seu tempo. Na verdade, Kierkegaard utiliza Feuerbach (contrapondo-se a ele em muitos aspectos) para “atacar e dissolver a ilusão da cristandade” (SILVA, 2010, p. 4). Kierkegaard pretende salvar o cristianismo da cristandade, recuperando o crístico, perdido na história cristã (idem, p. 3). Segundo Valls, o que caracteriza o ser-cristão não é a aceitação passiva de dogmas, mas a vivência prática do exemplo de Cristo, o que também não coincide com a concepção de “Cristianismo como doutrina objetiva, tradicional e vitoriosa” (2007, p. 392). Ora, muitas são as práticas abusivas cometidas em nome da religião que nos narra a História. Pensemos, por exemplo, na Inquisição, na “caça às bruxas” e nos interesses políticos que sempre se colocaram à frente da fé em muitos momentos da história não só da Igreja, mas também de outras instituições religiosas. Atento à realidade de opressão das consciências que se origina no discurso da Igreja, Nietzsche lê o cristianismo negação da vida, uma vez que essa doutrina “concebe o mundo como vale de lágrimas, em oposição ao mundo da felicidade eterna do além” (FEREZ, 2005, p. 10). Isso é uma forma de “platonismo para o povo”, segundo o filósofo, perverte os instintos na medida em que afirma que a verdadeira vida não está aqui, mas em outro mundo inventado pelo rancor, o que incita a fugir da vida para escapar da dor e da luta, ao mesmo tempo que colocam a renúncia e a resignação como virtudes (idem, p. 11). Em O Anticristo, conforme descreve Valls, Nietzsche expõe suas idéias mais ácidas a respeito do cristianismo. Para o filósofo, a compaixão é um vício, uma vez que é preciso que os fracos pereçam segundo as leis da natureza. O homem não é essencialmente bom e a igualdade como querem o cristianismo e o socialismo são o fim da cultura. “O cristianismo diviniza o nada” e, neste sentido, é um mantenedor do niilismo. Isso tudo se deve ao apóstolo Paulo que, segundo Nietzsche, foi o inventor da doutrina do pecado e da culpa, adaptando o cristianismo ao gosto dos inferiores. O cristianismo primitivo, contudo, por se espelhar no exemplo vivo de Cristo, não era assim: “na origem, o cristão representa a indiferença frente aos dogmas, ao culto, aos padres, à Igreja, à teologia” (VALLS, p. 397). Nietzsche anuncia que “o único cristão morreu na cruz”, e coloca a necessidade de um verdadeiro “ser cristão”.
Kierkegaard, por seu lado, critica a cristandade e o “ofício” de padre que, segundo ele, é o de legitimar diante de Deus o proibido por Deus. Para ele, a Igreja nada mais seria, então, do que uma instituição que teria por objetivo fazer a vontade do homem sem, contudo, ir de encontro com a vontade divina, o que ocorreria mediante pagamento. Para tanto, a cristandade faz uso o discurso para convencer e iludir o povo: “a ‘cristandade’ está mergulhada num abismo de sofística bem pior que o que florescia na Grécia no tempo dos sofistas” (VALLS, p. 403).
Ambos os filósofos aludem então ao ser verdadeiramente um cristão. Mas o que isso significa? O cristão é aquele que vive a prática cristã, segundo Nietzsche. Não se trata de doutrina ou de conjunto de indivíduos, mas de como o indivíduo realiza essa prática seguindo efetivamente o modelo de Cristo.
Vemos então que uma das primeiras distinções que devem ser feitas é aquela entre cristianismo, cristandade e cristicidade. Segundo o Aurélio, cristandade é “o conjunto dos povos ou países cristãos”, enquanto que cristianismo é “o conjunto das religiões cristãs, i.e, baseadas nos ensinamentos, na pessoa e na vida de Jesus Cristo” (p. 277). Se estas duas palavras são facilmente encontradas nos dicionários, o mesmo não acontece com cristicidade. De fato, esta parece ser um neologismo que carece de ser mais bem esclarecido. Valls deixa transparecer em seu texto que o conceito de cristicidade está, assim como o de cristianismo, mais ligado à efetiva prática cristã (como concebiam Nietzsche e Kierkegaard) o que se deve entender como a renúncia de si e a completa entrega ao outro, a exemplo do que foi a vida do Cristo. Note-se que esta atitude é, paradoxalmente, uma atitude de afronta ao mundo: o “deixe tudo e segue-me” vai de encontro às aspirações comuns do povo.
Nietzsche se coloca o desafio de recuperar a vida e de transmutar os valores do cristianismo: essa seria a saída, segundo o filósofo, para resolver o problema, revalorizando a vida:
Eliminando as esperanças ultraterrenas, Zaratustra, ‘o sem-Deus’, conta reinscrever o ser humano na natureza. Suprimindo o além, Nietzsche, o ‘anticristo’, quer estabelecer uma nova aliança entre homem e mundo. Naturalizar os valores morais, é nisso que consiste seu empreendimento filosófico (MARTON, p. 57).
Kierkegaard pretende também reverter a situação e, para isso, retorna ao N.T. para fazer ver que se tornar cristão é atitude de entrega total de si, de modo a “perder-se” de tudo:
É sofrer uma transformação radical [...]. É a dilaceração que Cristo incessantemente faz alusão quando diz que ser seu discípulo é ser sua mãe, seu irmão, sua irmã, e que não tem nem mãe, nem irmãos, nem irmãs, num outro sentido, e igualmente quando fala do conflito, no qual se odeia seu pai, sua mãe, seu próprio filho etc (VALLS, p. 400).
Ora, esta total entrega que corresponde à colocação de Deus no centro da vida do indivíduo acarretará muitos desencontros com as práticas sociais cristalizadas pelo uso, notadamente o individualismo de todas as épocas. Assim, sempre haverá algo de impopular no verdadeiro cristianismo.
São, pois, muitos os pontos de coincidência entre Nietzsche e Kierkegaard, tanto na crítica quanto na intenção de reforma. O filósofo dinamarquês contrapõe a prática cristã à realidade mundana; o filósofo alemão da mesma forma, vendo na cristandade a negação da vida. Porém, as soluções apontadas são diversas, uma vez que Kierkegaard propõe o retorno ao verdadeiro cristianismo, enquanto que Nietsche opta pelo seu abandono, muito embora “afirme que sempre haverá lugar para uma espécie de vida que ele supõe ser a vida do crucificado” (VALLS, p. 393).
Ao que se depreende das críticas dos filósofos, sobretudo quando as atualizamos aos nossos dias, é que, se de um lado as instituições religiosas foram corrompidas pelo poder, por outro as pessoas têm procurado na religião apenas o meio de satisfazer seus desejos e necessidades, sem uma verdadeira atitude de adoração ao sagrado.
Neste sentido, poderíamos nos questionar que fé é essa que o povo diz que professa. Religião de conveniência? Infelizmente, na maioria das vezes, é o que percebemos. A autêntica experiência religiosa demanda o descentramento do eu, a renúncia de si e colocar o centro da existência o totalmente outro e reconhecê-Lo como a fonte e fundamento de tudo quanto há. O homem deve servi-Lo e não esperar ser servido por Ele. Ora, essa atitude nunca foi facilmente compreendida e muito menos vivida na prática pela grande maioria das pessoas que se disseram e se dizem cristãs (ou mesmo de outras confissões religiosas). Mais difícil ainda em nossos dias, na pós-modernidade em que o que vale é a satisfação dos desejos do Eu, um Eu que se tornou o centro de si, do mundo e da história. Tem valor o que agrada o Eu e enquanto agrada. Nisso se incluem Deus e as religiões que, para se manterem vivas nas sociedades contemporâneas, têm de aderir às aspirações hedonistas do homem e às práticas de mercado. Mais do que nunca Nietzsche tem razão. Culpa das religiões? Embora tenham uma boa parcela de culpa ao aderirem a este movimento, talvez a culpa seja, de fato e como sempre, da ignorância das massas. A religião hoje se experimenta como “cultura e entretenimento dominical”, como colocado por Valls (p. 394). Deus deve, contudo, ser entendido como Aquele a quem se pode confiar a si mesmo, posto que é fidedigno. Essa é a verdadeira postura religiosa. Não a ideia imanentista a que se reduziu a sociedade contemporânea, mas a esperança num algo mais que possa satisfazer a necessidade de completude do homem e que diante dele se prostra e adora, reconhecendo-O como a origem, fundamento e manutenção de seu ser. Isso não significa negar o mundo e a vida, nem tampouco tornar-se alienado, mas procurar meios de efetivar o Bem da melhor forma possível já neste mundo e não simplesmente esperar que aconteça apenas no além. A religião que não promova esta forma de adesão livre do indivíduo será sempre alvo – e com razão – das críticas de filósofos como Nietzsche e Kierkegaard.
AURÉLIO. Minidicionário da língua portuguesa. 6. ed. Curitiba: Editora Positivo, 2006.
FEREZ, C. O. Nietzsche. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 2005.
MARTON, Scarlett. Uma ética nietzschiana. Cult, Ano 13, n. 149, São Paulo: Edit. Bregantini, 2010. ISSN 1414701-6.
SILVA, Jadson Teles. A influência de Feuerbach na crítica kierkegaardiana ao cristianismo. Revista Pandora Brasil, n. 2. Outubro 2010. ISSN 2175-3318. Disponível em:
Faz-se aqui a resenha do livro Conceito de classes sociais, de Theotonio dos Santos, lançado em 1970, em espanhol, e traduzido ao português em 1982 por Orlando dos Reis, sendo, no Brasil, publicado pela editora Vozes. Graduado em Sociologia, Política e Administração Pública pela UFMG, o autor possui mestrado em Ciência Política pela UnB, e dois doutorados em Economia por notório saber, sendo o primeiro concedido pela UFMG em 1985, e o segundo pela Universidade Federal Fluminense, em 1995. Ex-professor da Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, na França, da Fundação Getúlio Vargas, da Ritsumeikan University, do Japão, da PUC/RJ, e da Universidade Nacional Autônoma do México, entre outras, o autor é ainda pesquisador do CNPq, professor da Universidade Federal Fluminense, colaborador e consultor da UNESCO e diretor de uma dezena de instituições espalhadas pelo mundo. Com mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos, Theotonio dos Santos é um dos maiores nomes mundiais das áreas da Sociologia e da Economia.
Neste texto, o autor reflete sobre as dificuldades que pontuam a definição de classe social em Marx, que tem causado controvérsia entre alguns estudiosos, mesmo entre os marxistas. Para suas considerações, Santos seleciona duas críticas sobre esse tema e as analisa, buscando chegar a um conceito científico de classe social, e esclarecendo alguns pontos controversos sobre o assunto, apontados nos textos.
Segundo o autor, a noção de classe social é tão antiga quanto os povos da Terra: Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, entre outros, já trabalharam essa noção em alguns de seus escritos. É a partir do século XIX, contudo, que esse conceito é identificado como sendo a base do funcionamento da sociedade. Neste tempo, Marx deu-lhe uma dimensão científica ao atribuir-lhe o papel de base para explicar a sociedade e sua história. O filósofo, porém, de acordo com Santos, não sistematiza de modo rigoroso o conceito, o que deu margem para confusões interpretativas de sua obra.
Para demonstrá-lo, o autor expõe as idéias de dois estudiosos do assunto: Georges Gurvitch e Stanislav Ossowsky. Para o primeiro, Marx falhou ao não diferenciar devidamente história de sociologia, condição básica, segundo ele, para a constituição de uma ciência social. De acordo com esse autor, Marx não é claro quanto ao papel histórico do proletariado, nem consegue estabelecer a verdadeira importância da consciência de classe na definição de uma classe social. Em suma, Marx não deixa claro se as classes sociais sempre existiram ou não, uma vez que, se de um lado coloca a existência das classes em toda a história humana, de outro, mostra características que se fizeram presentes somente na modernidade industrial. Outro ponto confuso em Marx, segundo Gurvitch, é o conceito de ideologia, que é apresentado ora como uma ilusão da consciência, ora como mistificação consciente. Ossowsky, por sua vez, segundo Santos, procura estudar as classes sociais em Marx segundo um esquema dicotômico, um esquema de gradação e um esquema funcional. O primeiro deles enfoca o conflito entre classe dominante e classe dominada, expondo o pensamento marxista pelos vieses político e econômico. Já o esquema de gradação hierarquiza as classes sociais de acordo com uma escala, o que mostra um Marx mais sociólogo do que político ou economista do primeiro esquema. Por fim, o esquema funcional dá ênfase à luta entre setores de classe, cuja diferenciação é originária da propriedade das fontes de renda. De modo geral, Ossowsky entende que Marx concebe as classes sociais conforme o ponto de vista adotado no momento de sua análise.
De acordo com Santos, porém, nem Gurvitch, nem Ossowsky têm razão. Para o autor, para compreender o conceito de classes em Marx, é preciso ler sua obra situando-a no contexto de sua época e analisar os vários níveis de abstração que essa noção assume no texto. Percorrendo esse processo de análise, Santos afirma que Marx expõe o problema das classes como algo bastante mais complexo na prática do que na teoria, mas que ambos os estudos empírico e teórico são complementares. Marx, ainda de acordo com o autor, buscava analisar as classes em vários níveis diferentes, mas interdependentes, o que revela uma metodologia dialética na abordagem do tema. Com isso, Marx criava maneiras de estudar teoricamente situações não reais visando criar condições de, com base nos resultados, explicar a realidade. Desse modo, segundo Santos, Marx personifica as classes de modo abstrato, mas perfeitamente aplicável à realidade concreta, e, como tal, passível de estudos sociológicos. Com base nisto, Santos passa a estudar as classes sociais em Marx de acordo com a sua classificação em quatro níveis de abstração: o modo de produção (segundo o qual, o conceito de classes está vinculado às forças produtivas e dos meios de produção, o que supõe um embate de forças antagônicas que constituem as classes), a estrutura social (que corresponde à concretização da abstração teórica, correspondendo à descrição das relações existentes numa sociedade real), a situação social (ainda mais próxima da realidade, é uma aplicação das teorias à prática da sociedade e suas relações) e a conjuntura (corresponde à particularização do estudo a um caso social específico). Dessas análises, Santos conclui que a maneira como Marx trata o conceito de classes sociais em sua obra formam um sistema constituído de abordagens diferentes que se complementam, indo do abstrato (teórico) ao concreto (a realidade social) e vice-versa, e que, na medida em que se aproxima desse último, a teoria se redefine de modo a sempre ser aplicável à realidade. Ao final de seu estudo, o autor, após algumas considerações sobre a noção de consciência de classe em Marx, conclui que seria mais correto entender as classes sociais como conjuntos básicos de indivíduos que se opõem dentro de uma sociedade segundo o papel ocupado no processo de produção, e segundo as relações que estabelecem entre si no tocante à propriedade e ao trabalho. Desse modo, ficam sanadas as dificuldades interpretativas de Gurvitch e de Ossowsky, por meio de uma correlação lógica explicativa do fenômeno das classes segundo os conceitos marxistas.