Há fundamento em se dissociar fé e razão? São elas características opostas ou complementares da compreensão humana? Questões sempre antigas e sempre atuais que provocam debates acalorados em todos os âmbitos da sociedade. Recentemente, o desenvolvimento alcançado pela biogenética e as tentativas de provar a existência de Deus em laboratórios, têm reacendido o debate sobre o tema em nível mundial. Em artigo de 2001, a revista Veja já informava sobre as tentativas de cientistas de romper as fronteiras entre fé e ciência:

[...] essa fronteira está sendo posta abaixo por uma farta quantidade de estudos em laboratório cujo objetivo é usar as ferramentas da ciência tradicional para explicar mistérios religiosos ou procurar por Deus dentro do cérebro humano. São desse último tipo as pesquisas realizadas em cerca de trinta faculdades de medicina dos Estados Unidos, entre elas as de universidades famosas como Colúmbia, Duke, Harvard e Georgetown. Seus cientistas tentam entender como – e se – a fé e condutas baseadas nos princípios de solidariedade, perdão e bondade influenciam a cura de doenças e contribuem para o bem-estar das pessoas. Outras instituições, como o Centro de Teologia e Ciências Naturais, na Califórnia, trabalham com o objetivo de encontrar na cosmologia e na física argumentos que fundamentem a origem divina da criação do universo. [VEJA, 2001].

        O artigo diz ainda, que muitas entidades norteamericanas têm tido grande interesse nessas pesquisas, como é o caso da John Templeton Foundation, que, só no ano 2000 gastou 40 milhões de dólares financiando estudos interdisciplinares de religião e ciência. Essa e outras empresas, segundo a revista, “[...] estão ajudando a desenvolver uma nova linha de pesquisa, a neuroteologia. O objetivo dela é a busca das marcas neurológicas deixadas por experiências místicas e espirituais” [VEJA, 2001]. Mas, até que ponto se pode fazer teologia com os instrumentos da ciência? Questão controvertida que põe ainda mais lenha na fogueira sempre acesa das idéias. Positivo ou não, o fato é que há verdadeira aproximação entre o pensamento religioso e a razão científica em nossos dias. Mas não sem sofrimentos e protestos. Darwin, no século XIX, com sua explicação sobre a origem e evolução das espécies, tornou-se o “Copérnico da Biologia”, e provocou uma verdadeira revolução na maneira de o homem se relacionar com Deus e consigo mesmo, o que não agradou a muita gente, como salienta Küng (1979, p. 473):

Es innecesario detallar cómo cristianos, teólogos y dignatarios conservadores de procedencia anglicana, protestante y católica protestan y actúan contra la nueva doctrina [de Darwin], claramente contraria a al Biblia y la tradición. Análogamente a lo que había ocurrido con la nueva física y astronomía, una vez más se volvió a identificar el mensaje bíblico con una determinada teoría científica y desde la supuestamente segura roca de la fe bíblica o tradicional, se presentó batalla contra el pernicioso “evolucionismo” y a favor de un “fixismo” congruente con la Biblia y la tradición. […] Y si en el campo biológico todas las formas evolucionan, de esta manera y dan lugar continuamente a nuevas formas, ¿no vale lo mismo también en el campo espiritual y social para todas las ideas humanas, instituciones, organizaciones y estructuras […]? La Iglesia y la teología cristiana, ante esta nueva situación, ¿no tendrá que dar por terminado su papel?

        Vemos mais um capítulo do dilema antigo entre a teoria do devir de Eráclito e a teoria do ser imutável de Parmênides, neste caso, aplicadas ao pensamento humano. Afinal, evolui ou não evolui? Muda ou não muda? O autor nos esclarece que as idéias darwinistas foram adotadas por quase todos os biólogos ainda em seu tempo, sendo ajustadas em apenas alguns pontos. O debate teológico, porém, continuou acirrado ainda por muito tempo na Europa. Darwin foi acusado de ateísmo, embora nunca o tivesse sido. Muitos de seus seguidores, contudo, vão esposar um ateísmo ou o panteísmo, contra o dualismo cristão. Desse modo, Darwin, sem querer, terminou por estabelecer também um fundamentalismo científico. Época de autoritarismos dogmáticos. Se não religiosos, científicos. Hoje, em plena pós-modernidade a evolução das idéias – e das ciências – segue seu curso acidentado, e, como no passado, não deixa de se esbarrar com fundamentalismos de toda espécie.
        A evolução é um fato. Ora, percebemo-la na mente humana, na maneira de apreender o mundo, no pensamento e comportamento das crianças, na maneira de os indivíduos se relacionarem em sociedade. A ciência, na medida em que descobre e inventa, influencia nesse processo. A fé, por outro lado, procura dar respostas para o que não se compreende, muitas vezes estabelecendo dogmas incompatíveis com a razão. O problema maior ocorre quando esses pontos de vista são impostos aos outros: nasce o fanatismo que sempre se baseia na ignorância e na visão unilateral estacionária dos conteúdos da fé. Fanatismo é o que faz um indivíduo ou um grupo, além de morrer por uma idéia, passar a matar por ela. E a morte da consciência, da razão que faz o homem ser homem, é a primeira que se verifica neste processo. É preciso que se compreenda que, quando um texto religioso foi escrito, havia uma outra concepção de mundo, uma outra realidade social, de modo que essa produção tem seu significado ligado ao contexto em que nasceu. Com o tempo, deve haver uma adaptação aos novos contextos das sociedades e das mentes dos homens, uma ressignificação de acordo com o momento presente. Isso não significa o abandono de valores. Ora, se a sociedade muda, seus valores sofrem também alterações que acompanham a evolução dos indivíduos. Ocorre, porém, que a evolução moral da consciência se faz de modo mais lento do que a sua evolução intelectual. Alguns poderão dizer que as sociedades do passado eram mais organizadas e moralmente melhores do que as de hoje. Não entendemos assim. No passado, apenas as convenções, fundadas e mantidas pelo autoritarismo, eram preservadas por máscaras sociais que encobriam desastres morais e, muitas vezes, provocava esses mesmos desastres. Hoje, o que ocorre é a quebra das convenções e a queda das máscaras, de modo que se torna público o que antes era impensável.
Por seu lado, a ciência, que tem como objeto apenas elementos do mundo sensível, material, não atua somente neste âmbito, uma vez que seus resultados provocam mudanças na maneira de os homens verem a realidade, pensarem e agirem individual e coletivamente. Em outras palavras, o desenvolvimento científico, mesmo que materialista, provoca uma mudança na ética humana e na sua relação com o divino. Mas sempre haverá questões que a ciência não responde, até porque, à medida que algumas são respondidas, outras tantas surgem, como fruto da própria evolução do intelecto humano. O ser humano, animal que possui o logos, deve, portanto, evoluir mentalmente, espiritualmente, sem, contudo, deixar de acompanhar a evolução do mundo material no qual se insere. Evolui-se em duas vertentes: no plano físico, como animal, trazendo os traços de todo o processo evolutivo ocorrido durante as eras, e como intelecto, através das experiências vividas pelo indivíduo e pela coletividade no ajustamento de sua condição íntima (moral), ou, se desejar, no conhecimento da verdade (verdade esta que inclui o conhecimento da divindade). Desse modo, a evolução moral do homem não é só uma questão de evolução intelectiva, mas depende em grande parte desse desenvolvimento. Considerando dessa forma, a ciência pode abalar a fé somente se consideramos a fé dogmática, intransigente, fundamentalista, uma vez que esta se baseia no desconhecimento (não saber) e na ignorância (não querer saber). A evolução representa justamente a destruição da ignorância, pelo conhecimento do real e pelo aclaramento da própria noção de realidade transcendente. Por outro lado, a fé que raciocina, que tem razão, que busca o “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, e não o dos filósofos e sábios” como colocado por Pascal em relato de usa experiência mística, o Deus acima das crenças, das crendices e dos dogmas irracionais, é uma fé sadia, aberta às descobertas da mente, e que não se sente ameaçada por essas mesmas descobertas.
        Ora, a evolução se faz pela descoberta do que já existe e sempre existiu. A descoberta apenas alarga a visão do homem, a sua consciência. Conhecendo a realidade, o homem entende melhor a si mesmo e, com isso, adquire uma liberdade cada vez maior. Liberdade, bem entendido, a que vem acompanhada da responsabilidade: conhecimento, liberdade e responsabilidade não podem não andar juntos, sob pena de a liberdade descambar para a libertinagem, que é o que vem ocorrendo na contemporaneidade, sobretudo com a pretensa morte da metafísica. O alargamento do campo de visão proporciona ao homem o entendimento do peso das suas ações, ou seja, estimula a reflexão ética. As relações entre os indivíduos passam então a ser reguladas de acordo com esses novos paradigmas.
        A liberdade de consciência, que traz a responsabilidade, não é bem vista pelos sistemas religiosos fundamentalistas que não raro se constituem como entidades de poder, de mando e de domínio. Esses sistemas sentem-se ameaçados diante pela liberdade do indivíduo que passa a interpretar Deus sem precisar de um intermediário. Isso porque o fundamentalismo se baseia na imposição ao outro de uma forma estática de pensar, o que significa a anulação do logos desse outro, de sua capacidade de pensar e, com isso, de ser humano. Quando o indivíduo pensa, conhece e, conhecendo, tem condição de “sair da Matrix” do obscurantismo e da ignorância, e assume uma postura crítica diante dos fatos que lhe dizem respeito. Aprende a pensar por si mesmo. À primeira vista, parece individualismo, mas não é. Individualismo (ou egoísmo) é libertinagem e não liberdade; implica em fazer a própria vontade sem levar em conta o bem da coletividade. Pensar por si mesmo é fazer uso da razão para conhecer e transformar para melhor, colocando em prática a ética no meio social. Por isso se diz que o indivíduo evolui intelectualmente e moralmente, de modo que um aspecto não pode caminhar sem o outro. Há, porém, aqueles que se comprazem em manter as aparências e a imutabilidade de idéias que lhe são caras ou por ignorância e comodismo, ou por interesses escusos. É precisamente isso que a Alegoria da Caverna, de Platão, nos mostra.
        Tirar o homem do centro do universo, depois fazer com que seja criado à imagem e semelhança dos animais foi um choque muito grande no orgulho da humanidade. E não poderia ser de outra forma: o conhecimento deve servir, antes de tudo, para tornar o homem humilde. Com a evolução do pensamento o homem conhece melhor o seu lugar na realidade que o cerca. Isso é uma lição para a humanidade e em nada desmerece a sua existência. O conhecimento proporciona a quebra do atavismo secular do pensamento dogmático. O que não se pode fazer é trocar um fundamentalismo por outro, ou seja, passar de um fundamentalismo religioso a outro, científico, materialista e ateu. Corre-se esse risco especialmente quando a religião e a ciência se misturam com a política. Nenhum extremo está com a razão, a ciência não consegue explicar tudo porque estamos em um processo contínuo de desenvolvimento, de modo que novas questões surgem ao se resolverem as velhas questões. Deve-se ter em mente que não podemos ter neste mundo o conhecimento total da verdade, e, sendo assim, o que melhor se pode fazer é investigar cientificamente e, ao mesmo tempo, manter uma fé racionalizada e consciente de que a divindade está acima das instituições humanas.


Benedito Fernando Pereira
Licenciado em Letras (Univás), Bacharel em Filosofia (FACAPA), graduando em História (Univás) e pós-graduando em Ensino de Filosofia (FACAPA).


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

KÜNG, Hans. ¿Existe Dios?: respuesta al problema de Dios en nuestro tiempo. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1979.

TEICH, Daniel Hessel. Em busca de Deus. Veja on-line, Ed. nº 1703, 6 jun. 2001. Disponível em: . Acesso em: 10 mai. 2009.