VALLS, L. M. Álvaro. Sobre as críticas ao cristianismo e à cristandade em Nietzsche e em Kierkegaard. Síntese, Belo Horizonte, v. 34, n. 110, 2007, pág. 387-409.

        O texto que segue é a resenha crítica do artigo Sobre as críticas ao cristianismo e à cristandade em Nietzsche e em Kierkegaard, de Álvaro Valls, publicado na revista Síntese, em 2007. Álvaro L. M. Valls nasceu em Porto Alegre em 1947. Possui graduação em Filosofia na Faculdade Nossa Sra. Medianeira (1971) em São Paulo, Mestrado na Universitat Heidelberg (Alemanha, 1977) e doutorado na mesma universidade. Professor Adjunto aposentado de Filosofia da UFRGS, atualmente é professor titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: Kierkegaard, socratismo, filosofia dinamarquesa, ética, Nietzsche e ironia. Já publicou artigos sobre temas filosóficos e educacionais. Em seu texto, o autor fala dos pontos comuns entre as críticas que Nietzsche e Kierkegaard fazem à cristandade, afirmando que, por bases diferentes, ambos os filósofos condenam o que chamaram de falso cristianismo.
O século XIX foi o século das críticas à religião: herdeiros do Iluminismo, os autores desse período – notadamente Marx, Freud e Nietzsche – foram as raízes do niilismo do século XX. Contudo, menos conhecida, mas não menos áspera é a crítica do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard à prática religiosa comum em seu tempo e que, na sua visão, não correspondia aos ditames do Cristo. Segundo Valls, os irônicos ataques do filósofo à cristandade podem ser vistos até mesmo como mais ferozes do que os nietzschianos.

        A leitura de A Essência do Cristianismo de Feuerbach inspira Kierkegaard a escrever O conceito de angústia e Migalhas filosóficas. Neste último, um “diálogo” com o texto do filósofo alemão, Kierkegaard, tomando como modelo o cristianismo, analisa os conceitos de verdade e história. Segundo Silva (2010, p. 2),

Nesta obra, Kierkegaard começa a esboçar sua severa crítica ao cristianismo e a Igreja dinamarquesa de sua época. Para ele, os pastores e teólogos não sabiam o que significava ser cristão ao passo que o autor escandalizado sabia muito bem sobre aquilo se colocava contra. Tal crítica vai alcançar um tom polêmico e marcadamente satírico nos fascículos que ele mesmo editou em 1855 denominados de O instante. Nestes, há também a influência da análise Feuerbachiana acerca da essência do cristianismo, que se tornará fundamental para Kierkegaard definir a autenticidade do ser cristão.

        Para Feuerbach a religião se faz nas relações humanas. Kierkegaard respeita a religião e justamente por isso se propõe a tarefa de redescobrir a original essência dos conceitos do cristianismo, desmascarando as práticas que eram tidas como cristãs em seu tempo. Na verdade, Kierkegaard utiliza Feuerbach (contrapondo-se a ele em muitos aspectos) para “atacar e dissolver a ilusão da cristandade” (SILVA, 2010, p. 4). Kierkegaard pretende salvar o cristianismo da cristandade, recuperando o crístico, perdido na história cristã (idem, p. 3). Segundo Valls, o que caracteriza o ser-cristão não é a aceitação passiva de dogmas, mas a vivência prática do exemplo de Cristo, o que também não coincide com a concepção de “Cristianismo como doutrina objetiva, tradicional e vitoriosa” (2007, p. 392). Ora, muitas são as práticas abusivas cometidas em nome da religião que nos narra a História. Pensemos, por exemplo, na Inquisição, na “caça às bruxas” e nos interesses políticos que sempre se colocaram à frente da fé em muitos momentos da história não só da Igreja, mas também de outras instituições religiosas. Atento à realidade de opressão das consciências que se origina no discurso da Igreja, Nietzsche lê o cristianismo negação da vida, uma vez que essa doutrina “concebe o mundo como vale de lágrimas, em oposição ao mundo da felicidade eterna do além” (FEREZ, 2005, p. 10). Isso é uma forma de “platonismo para o povo”, segundo o filósofo, perverte os instintos na medida em que afirma que a verdadeira vida não está aqui, mas em outro mundo inventado pelo rancor, o que incita a fugir da vida para escapar da dor e da luta, ao mesmo tempo que colocam a renúncia e a resignação como virtudes (idem, p. 11). Em O Anticristo, conforme descreve Valls, Nietzsche expõe suas idéias mais ácidas a respeito do cristianismo. Para o filósofo, a compaixão é um vício, uma vez que é preciso que os fracos pereçam segundo as leis da natureza. O homem não é essencialmente bom e a igualdade como querem o cristianismo e o socialismo são o fim da cultura. “O cristianismo diviniza o nada” e, neste sentido, é um mantenedor do niilismo. Isso tudo se deve ao apóstolo Paulo que, segundo Nietzsche, foi o inventor da doutrina do pecado e da culpa, adaptando o cristianismo ao gosto dos inferiores. O cristianismo primitivo, contudo, por se espelhar no exemplo vivo de Cristo, não era assim: “na origem, o cristão representa a indiferença frente aos dogmas, ao culto, aos padres, à Igreja, à teologia” (VALLS, p. 397). Nietzsche anuncia que “o único cristão morreu na cruz”, e coloca a necessidade de um verdadeiro “ser cristão”.
        Kierkegaard, por seu lado, critica a cristandade e o “ofício” de padre que, segundo ele, é o de legitimar diante de Deus o proibido por Deus. Para ele, a Igreja nada mais seria, então, do que uma instituição que teria por objetivo fazer a vontade do homem sem, contudo, ir de encontro com a vontade divina, o que ocorreria mediante pagamento. Para tanto, a cristandade faz uso o discurso para convencer e iludir o povo: “a ‘cristandade’ está mergulhada num abismo de sofística bem pior que o que florescia na Grécia no tempo dos sofistas” (VALLS, p. 403).
Ambos os filósofos aludem então ao ser verdadeiramente um cristão. Mas o que isso significa? O cristão é aquele que vive a prática cristã, segundo Nietzsche. Não se trata de doutrina ou de conjunto de indivíduos, mas de como o indivíduo realiza essa prática seguindo efetivamente o modelo de Cristo.
Vemos então que uma das primeiras distinções que devem ser feitas é aquela entre cristianismo, cristandade e cristicidade. Segundo o Aurélio, cristandade é “o conjunto dos povos ou países cristãos”, enquanto que cristianismo é “o conjunto das religiões cristãs, i.e, baseadas nos ensinamentos, na pessoa e na vida de Jesus Cristo” (p. 277). Se estas duas palavras são facilmente encontradas nos dicionários, o mesmo não acontece com cristicidade. De fato, esta parece ser um neologismo que carece de ser mais bem esclarecido. Valls deixa transparecer em seu texto que o conceito de cristicidade está, assim como o de cristianismo, mais ligado à efetiva prática cristã (como concebiam Nietzsche e Kierkegaard) o que se deve entender como a renúncia de si e a completa entrega ao outro, a exemplo do que foi a vida do Cristo. Note-se que esta atitude é, paradoxalmente, uma atitude de afronta ao mundo: o “deixe tudo e segue-me” vai de encontro às aspirações comuns do povo.
        Nietzsche se coloca o desafio de recuperar a vida e de transmutar os valores do cristianismo: essa seria a saída, segundo o filósofo, para resolver o problema, revalorizando a vida:

Eliminando as esperanças ultraterrenas, Zaratustra, ‘o sem-Deus’, conta reinscrever o ser humano na natureza. Suprimindo o além, Nietzsche, o ‘anticristo’, quer estabelecer uma nova aliança entre homem e mundo. Naturalizar os valores morais, é nisso que consiste seu empreendimento filosófico (MARTON, p. 57).

        Kierkegaard pretende também reverter a situação e, para isso, retorna ao N.T. para fazer ver que se tornar cristão é atitude de entrega total de si, de modo a “perder-se” de tudo:

É sofrer uma transformação radical [...]. É a dilaceração que Cristo incessantemente faz alusão quando diz que ser seu discípulo é ser sua mãe, seu irmão, sua irmã, e que não tem nem mãe, nem irmãos, nem irmãs, num outro sentido, e igualmente quando fala do conflito, no qual se odeia seu pai, sua mãe, seu próprio filho etc (VALLS, p. 400).

        Ora, esta total entrega que corresponde à colocação de Deus no centro da vida do indivíduo acarretará muitos desencontros com as práticas sociais cristalizadas pelo uso, notadamente o individualismo de todas as épocas. Assim, sempre haverá algo de impopular no verdadeiro cristianismo.
        São, pois, muitos os pontos de coincidência entre Nietzsche e Kierkegaard, tanto na crítica quanto na intenção de reforma. O filósofo dinamarquês contrapõe a prática cristã à realidade mundana; o filósofo alemão da mesma forma, vendo na cristandade a negação da vida. Porém, as soluções apontadas são diversas, uma vez que Kierkegaard propõe o retorno ao verdadeiro cristianismo, enquanto que Nietsche opta pelo seu abandono, muito embora “afirme que sempre haverá lugar para uma espécie de vida que ele supõe ser a vida do crucificado” (VALLS, p. 393).
Ao que se depreende das críticas dos filósofos, sobretudo quando as atualizamos aos nossos dias, é que, se de um lado as instituições religiosas foram corrompidas pelo poder, por outro as pessoas têm procurado na religião apenas o meio de satisfazer seus desejos e necessidades, sem uma verdadeira atitude de adoração ao sagrado.
        Neste sentido, poderíamos nos questionar que fé é essa que o povo diz que professa. Religião de conveniência? Infelizmente, na maioria das vezes, é o que percebemos. A autêntica experiência religiosa demanda o descentramento do eu, a renúncia de si e colocar o centro da existência o totalmente outro e reconhecê-Lo como a fonte e fundamento de tudo quanto há. O homem deve servi-Lo e não esperar ser servido por Ele. Ora, essa atitude nunca foi facilmente compreendida e muito menos vivida na prática pela grande maioria das pessoas que se disseram e se dizem cristãs (ou mesmo de outras confissões religiosas). Mais difícil ainda em nossos dias, na pós-modernidade em que o que vale é a satisfação dos desejos do Eu, um Eu que se tornou o centro de si, do mundo e da história. Tem valor o que agrada o Eu e enquanto agrada. Nisso se incluem Deus e as religiões que, para se manterem vivas nas sociedades contemporâneas, têm de aderir às aspirações hedonistas do homem e às práticas de mercado. Mais do que nunca Nietzsche tem razão. Culpa das religiões? Embora tenham uma boa parcela de culpa ao aderirem a este movimento, talvez a culpa seja, de fato e como sempre, da ignorância das massas. A religião hoje se experimenta como “cultura e entretenimento dominical”, como colocado por Valls (p. 394). Deus deve, contudo, ser entendido como Aquele a quem se pode confiar a si mesmo, posto que é fidedigno. Essa é a verdadeira postura religiosa. Não a ideia imanentista a que se reduziu a sociedade contemporânea, mas a esperança num algo mais que possa satisfazer a necessidade de completude do homem e que diante dele se prostra e adora, reconhecendo-O como a origem, fundamento e manutenção de seu ser. Isso não significa negar o mundo e a vida, nem tampouco tornar-se alienado, mas procurar meios de efetivar o Bem da melhor forma possível já neste mundo e não simplesmente esperar que aconteça apenas no além. A religião que não promova esta forma de adesão livre do indivíduo será sempre alvo – e com razão – das críticas de filósofos como Nietzsche e Kierkegaard.


Benedito Fernando Pereira
Licenciado em Letras (Univás), Bacharel em Filosofia (FACAPA), graduando em História (Univás) e pós-graduando em Ensino de Filosofia (FACAPA).


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

AURÉLIO. Minidicionário da língua portuguesa. 6. ed. Curitiba: Editora Positivo, 2006.

FEREZ, C. O. Nietzsche. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 2005.

MARTON, Scarlett. Uma ética nietzschiana. Cult, Ano 13, n. 149, São Paulo: Edit. Bregantini, 2010. ISSN 1414701-6.

SILVA, Jadson Teles. A influência de Feuerbach na crítica kierkegaardiana ao cristianismo. Revista Pandora Brasil, n. 2. Outubro 2010. ISSN 2175-3318. Disponível em: Acesso em: 02/12/2010.