Da identidade absoluta à oposição total, a relação tensa entre filosofia e psicanálise constitui um dos traços fundamentais da obra de Lacan

Lacan foi um teórico da psicanálise que se notabilizou pela importância que concedeu à filosofia. Suas referências filosóficas são superabundantes, as mais diversas tradições da filosofia encontram-se representadas em seus textos e em seus seminários, num desfile de nomes ilustres convocados à discussão dos mais variados tópicos da teoria psicanalítica. Esse index nominorum impressiona por sua extensão e variedade: podemos aí encontrar, em posição de destaque, Sócrates, Platão, Aristóteles, Plotino, Descartes, Pascal, Kant, Hegel, Kierkegaard e Heidegger, para ficarmos apenas com os mais famosos.

No entanto, a atitude de Lacan para com a filosofia está longe de ser desprovida de ambigüidades. Ao lado desse recurso constante às idéias filosóficas, pelo qual procura esclarecer as questões mais espinhosas da teoria, podemos encontrar, por exemplo, uma reiteração de recusa da filosofia como uma forma de pensamento inadequada para a abordagem do inconsciente, tal como já acontecia com Freud. Lacan resgata, inclusive, a célebre comparação que Freud propôs entre os sistemas filosóficos e os delírios paranóicos, como uma maneira de enfatizar o caráter “patológico” da especulação metafísica, em seu esforço de construir, pelo simples exercício da razão, uma explicação abrangente da totalidade do real.

Podemos, de modo geral, discriminar três atitudes básicas de Lacan a respeito da filosofia ao longo de sua obra: as generalizações antifilosóficas, que exprimem uma condenação em bloco da filosofia; as tentativas de demarcação entre o campo psicanálise e o da filosofia, nas quais procura exprimir a diferença essencial entre ambos os discursos; e, no extremo oposto, uma proposta de identificação entre psicanálise e filosofia, que não deixa de parecer paradoxal diante das duas primeiras. O interessante é que essas atitudes conflitantes não representam nenhuma evolução perceptível dentro do pensamento de Lacan; todas podem ser encontradas nos diversos momentos do desenvolvimento de sua obra.

Três atitudes em relação à filosofia

As generalizações antifilosóficas de Lacan são variações em torno da idéia básica de que a filosofia como um todo é incapaz de apreender e dar sentido aos conceitos fundamentais com os quais trabalha a psicanálise. Vejamos alguns exemplos. A psicanálise teria rompido decisivamente com “a concepção cartesiana do sujeito” – esse, na verdade, um clichê que atravessa o pensamento francês ao longo de boa parte do século 20 –, mas a filosofia na sua totalidade teria permanecido presa a essa concepção do sujeito que o vincula exclusivamente ao conhecimento e à consciência: “Isso quer dizer que um sujeito humano nunca é um puro e simples sujeito do conhecimento, como o constrói toda filosofia (…). Sabemos que não existe sujeito humano que seja um puro sujeito do conhecimento, a menos que o reduzamos (…) ao que chamamos, na filosofia, de uma consciência”.

Outro pecado universal da filosofia (até mesmo dos idealistas!) teria sido assumir o realismo – a crença em que a realidade existe independentemente dos observadores e que o conhecimento consiste em alguma forma de apreensão dessa realidade –, uma posição que a psicanálise teria superado já com Freud: “Na perspectiva freudiana, o princípio de realidade se apresenta como se exercendo de uma maneira que é essencialmente precária. Nenhuma filosofia até aqui avançou tão longe nesse sentido (…). Comparados com Freud, os idealistas da tradição filosófica são apenas café pequeno, pois, afinal de contas, essa famosa realidade, eles não a contestam seriamente, eles a domesticam”.

Algumas dessas generalizações antifilosóficas beiram a desqualificação pura e simples. Assim, no Seminário 16: De um Outro ao outro (1968-1969), Lacan retoma sua crítica do cartesianismo (nesse momento ele está falando mais de Pascal), para reiterar que o sujeito pensante só pode reconhecer-se como um efeito de linguagem, e conclui: “Isso já está feito, contrariamente ao que se possa imaginar, precisamente em razão da lamentável carência, da futilidade cada vez mais evidente de toda filosofia” (sessão de 5 de fevereiro de 1969). Mais adiante, nesse mesmo seminário, o desconhecimento do “furo” que assinala o limite da inscrição significante sobre o real que constitui o sujeito será razão para considerar a filosofia como “uma forma de debilidade mental” (sessão de 12 de fevereiro de 1969). Em seus últimos seminários Lacan passará a declarar-se taxativamente como um antifilósofo.

Em outras passagens, Lacan procura apenas diferenciar filosofia e psicanálise, sem condenar tão explicitamente o conhecimento filosófico por sua inadequação extrema às questões psicanalíticas. A principal ferramenta teórica que ele utiliza nesse esforço de demarcação é a sua célebre teoria dos quatro discursos, introduzida no Seminário 17: O avesso da psicanálise (1969-1970). Ali, ele propõe as noções de discurso do senhor e discurso universitário como duas figuras do pensamento filosófico, correspondendo à especulação metafísica e à filosofia acadêmica, respectivamente, e as opõe ao discurso do analista. Este último representaria a ­psicanálise, que escaparia à dupla ilusão da filosofia: a crença na possibilidade de uma totalização do saber (discurso do senhor) e na possibilidade de preservar, acumular e transmitir um saber articulado pela tradição (discurso universitário).

Mas o mais intrigante é que, apesar desse esforço de diferenciação e da recusa global da filosofia nas suas manifestações mais extremas, podemos encontrar igualmente em Lacan formulações que aproximam e, no limite, identificam psicanálise e filosofia. Assim, por exemplo, no texto “Função e campo da fala e da linguagem na ­psicanálise” – texto que resultou de uma ampliação do “Discurso de Roma”, de 1953, em que a idéia do “retorno a Freud” foi apresentada para o grande público –, ele menciona como o recurso à filosofia pode esclarecer o sentido do vocabulário freudiano: “Mas parece-nos que esses termos só podem esclarecer-se ao estabelecermos sua equivalência com a linguagem atual da antropologia e, até mesmo, com os últimos problemas da filosofia, onde, freqüentemente, a psicanálise só tem a beneficiar-se”.

Na conferência intitulada “Freud no século” (1956), em que realiza um balanço do desenvolvimento da psicanálise por ocasião das comemorações do centenário do nascimento de Freud, Lacan projeta essa identificação retrospectivamente, afirmando o caráter filosófico do pensamento freudiano, na contramão da recusa explícita da filosofia por parte de Freud que ele, aliás, em outros momentos, endossara plenamente: “(…) qual é o centro de gravidade da descoberta freudiana, qual é a sua filosofia? Não que Freud tenha feito filosofia, ele sempre recusou que fosse filósofo. Mas, colocar-se uma questão é já sê-lo, mesmo que não se saiba que se a coloca? Portanto, Freud, o filósofo, o que ensina ele?”. Essa condição de filósofo involuntário é atribuída por Lacan a si mesmo em outra passagem: “Eu não sou filósofo, [mas] quanto menos se quer fazer filosofia, mais dela se faz (…)” (Seminário 12: Problemas cruciais para a psicanálise, sessão de 17 de março de 1965).

Talvez a mais impressionante afirmação da identidade entre psicanálise e filosofia seja aquela feita a propósito de um dos conceitos mais célebres do período final do pensamento de Lacan, a saber, o uso que faz da noção de “nó borromeano”. Esse nó é uma figura topológica, presente no brasão da família italiana dos Borromeus da qual tira seu nome, formada por três anéis que se entrelaçam de tal modo que, rompendo-se qualquer um deles, os outros dois também ficam separados. Lacan a utiliza para representar as relações de dependência recíproca entre os três “registros” – o simbólico, o imaginário e o real – que constituem as categorias de sua versão particular do que seria uma metapsicologia (termo cunhado por Freud para designar o conjunto dos conceitos fundamentais da psicanálise). A importância que Lacan atribui a essa figura e a suas implicações conceituais fica evidente justamente quando ele exprime a forma como concebe, a partir dela, as suas relações com a filosofia: “De maneira que, em suma – perdoem-me a infatuação – o que eu faço, o que tento fazer com meu ‘nó bô’, não é nada menos do que a primeira filosofia que me parece sustentar-se” (Seminário 23: O sinthoma, sessão de 11 de maio de 1976). Essa posição é reiterada pouco tempo depois, o que não deixa dúvidas de que Lacan a considera como conclusiva no que diz respeito às relações entre filosofia e psicanálise, inclusive estendendo-a, mais uma vez, a Freud: “O que faço ali, como observa alguém com bom discernimento que é Althusser, é filosofia. Mas filosofia é tudo que sabemos fazer. Meus nós borromeanos, isso é filosofia também. É uma filosofia que eu manejei como pude, seguindo a corrente, se posso dizer, a corrente que resulta da filosofia de Freud” (Seminário 25: O momento de concluir, sessão de 20 de dezembro de 1977).

Reinvenção da psicanálise

O que podem significar essa ambivalência e essas oscilações na maneira de pensar as relações entre a psicanálise e a filosofia? Talvez a resposta esteja em não levar excessivamente a sério as reivindicações filosóficas de Lacan, como muitas vezes se faz. Sabemos que a filosofia não é a única disciplina convocada por Lacan em seu esforço de reinvenção da psicanálise. Suas referências extra-psicanalíticas incluem a lin­güística, a antropologia, a física relativista, a mística cristã, a topologia e a teoria dos conjuntos, a lógica e a teoria da quantificação, a cibernética, a literatura (da tragédia grega a Joyce), a biologia do comportamento, a embriologia e a psiquiatria. É difícil imaginar que um conjunto tão heterogêneo de referências possa ter sido empregado em seu sentido literal; Lacan, de fato, muitas vezes as utiliza com uma liberdade que beira a irresponsabilidade.

Ao contrário, se levamos em conta a fundamentação clínica do pensamento lacaniano, mencionada inclusive quando se trata de justificar suas posições antifilosóficas, é possível perceber como, na maior parte das vezes, Lacan faz um uso perfeitamente metafórico desses conceitos para pôr em relevo algum aspecto crucial da teoria da clínica psicanalítica ou para introduzir uma nuança que julga imprescindível em algum conceito herdado de Freud. Assim, por exemplo, o recurso a Hegel e à “dialética do senhor e do escravo” vai servir para repensar a teoria freudiana do Édipo em termos de uma dinâmica intersubjetiva, e não como um sistema de escolhas e de relações de objeto, noção que Lacan rejeita e procura excluir da psicanálise, tendo a isso dedicado todo um ano do Seminário. Da mesma forma, o agalma platônico e a longa discussão do Banquete no Seminário 8, vão estar a serviço de uma profunda revisão da concepção lacaniana da transferência que aí se desenvolve – um conceito crucial para a clínica psicanalítica. Outros exemplos desse emprego metafórico das concepções filosóficas podem ser elencados sem dificuldades. O conceito psicanalítico de repetição vai ser trabalhado tanto com relação às noções aristotélicas de tiquê e autômaton, quanto com referência ao problema da repetição em Kierkegaard; a teoria lacaniana do significante começa pela lingüística estrutural, mas não desdenha o neoplatonismo de Plotino; e assim por diante.

É claro que nem toda a filosofia que povoa o texto lacaniano vai poder ser interpretada dessa forma. Como qualquer outra teoria, a psicanálise de Lacan teve influências filosóficas efetivas que atuaram na sua formação. No entanto, essas não serão necessariamente as mais freqüentes e as mais celebradas. Podemos, num relance, levantar uma série de nomes que poderiam cair nessa condição, de Politzer a Merleau-Ponty na conformação de sua atitude para com a psicanálise, por um lado; do positivismo aos frankfurtianos, na elaboração de sua teoria social, por outro. Outra questão é se perguntar pela relevância filosófica das formulações lacanianas elas mesmas. Essas são apenas sugestões, que precisam ser seguidas por um trabalho de análise sistemática da obra, que possa estabelecer ou refutar sua pertinência. No entanto, talvez caiba o alerta de que nem todas as inúmeras referências filosóficas presentes em Lacan devam ser tomadas apressadamente pelo seu valor de face.

Richard Theisen Simanke é professor de Filosofia da UFSCar e da PUCPR. Autor, entre outros trabalhos, de A formação da teoria freudiana das psicoses (Ed. 34) e Metapsicologia lacaniana: os anos de formação (Discurso Editorial).