A busca pelo princípio constitutivo de todas as coisas ocuparam a mente dos primeiros filósofos. O chamado arché panton foi objeto das mentes brilhantes dos pré-socrásticos, iniciando com Tales de Mileto. Tales dizia ser a água o arché panton. Anaximenes o Ar e Anaximandro um princípio informe e infinito, chamado de ápeiron. Durante os próximos cento e cinquenta anos, os filósofos tatearam neste nevoeiro até o surgimento de Heráclito, que deu uma nova conotação para o universo visível.

      Várias concepções surgiram na sequencia: a existência de um único princípio unificador, a existência do átomo por Demócrito, a matemática de Pitágoras e seus seguidores. Á partir de 450 a.C. A atenção passa do universo para o homem. Seria uma inutilidade querer saber o arché panton se não se sabia nem mesmo a natureza humana. Os sofista contribuíram para o avanço dessas idéias. Protágoras defendia que a verdade, seja ela qual for, é subjetiva. Pode existir uma verdade para cada pessoa. Ésquines ao dizer aos atenienses que eles haviam matado Sócrates, o chama de sofista. É bem verdade que Sócrates não limitou seu ensino a um número restrito de seguidores, além de ensinar de graça, ao contrário dos sofistas. A grande diferença estava no fato de que Sócrates entendia perfeitamente que não era mais sábio do que seus contemporâneos. Ele tinha certeza de que nada sabia, ou seja, continuava sempre numa busca incessante pela sabedoria, enquanto seus compatriotas tinham a certeza de que muito sabiam.

      Com essa postura, Sócrates avançou muito mais do que seus contemporâneos. Percebeu que as idéias morais de sua época eram confusas e contraditórias. Para Sócrates tudo o que é imperfeito é irreal, a realidade só se encontra na perfeição. Daí pode-se entender o desenvolvimento do hiper-urânio por Platão mais tarde. Surge então a dialética de Sócrates. A dialética evoluiu para o chamado elênchos. Método implacável de perguntas que fazia com que o interlocutor declarasse que seus argumentos e conclusões eram falhos. A chamada maiêutica (obstetrícia) socrática tinha seu lado positivo. As idéias nasciam com um conceito mais puro pelo mesmo processo de perguntas e respostas. Mesmo assim, Sócrates dizia que todo conhecimento é como um olhar pela janela sem poder entrar na casa.

      É na vida moral, porém que Sócrates deixa seu legado à filosofia. Para ele as ações más ou estúpidas dos homens devem-se a ignorância. Uma vez alcançada a sabedoria os homens obrigatoriamente viveriam de maneira mais digna. O que mais impressiona na vida de Sócrates é sua coerência. Ele viveu o que pregou. Não fugiu de sua morte ao ter oportunidades. Tal fuga seria clandestina, pelo suborno dos guardas, e burlando as leis que ele tanto venerava. O cínismo (no sentido moderno da palavra) está presente até mesmo em sua defesa ao provocar os juízes e jurados dizendo que deveria ser sustentado até os fim de seus dias pelo Estado ateniense.

      Quando fala-se do julgamento de Sócrates, pela distância de tempo em que nos encontramos dele, parece ser fácil emitir um juízo condenatório à aqueles que o forçaram a beber cicuta. Pode-se perguntar: quantos atenienses viam Sócrates com nosso olhos? Até mesmo a justiça ateniense era capaz de barbaridades. O julgamento de Sócrates tem aspectos importantes a serem analisados. Primeiro: não houve precipitação. Todos os trâmites legais foram guardados. Em nenhuma época posterior seu julgamento foi anulado ou refeito, como por exemplo foi o caso de Joana D’Arc. Seus acusadores não eram pessoas vulgares na sociedade, foram homens de renome. Platão cita Anito, um democrata que tivera um bom relacionamento com Sócrates e era um bom representante político. Sobre as acusações parece-nos que foram levianas e irrelevantes, porém eram previstas em lei. Diópites, em 431 a.C. fez com que uma lei de sua autoria fosse aprovada, segundo a qual todos os que não acreditassem nos deuses ou ensinassem doutrinas das coisas do espaço deveriam ser condenados. Essas são palavras citadas no início de sua acusação e refutada por Sócrates em sua defesa. Legalmente não houve desvio ou arbitrariedade. Dentro das circunstancias em que se processou o julgamento de Sócrates foi justo. Justo aqui significa legalidade e fundamentação das leis.

      Sócrates foi julgado por júri de 500 pessoas, escolhidas entre as seis mil que eram indicadas anualmente. Destes, 280 foram contra e 220 a favor, o que mostra um equilíbrio nas opiniões. Sócrates era bem conhecido de todos. O conheciam pelas batalhas enquanto soldado, talvez pelas piadas a seu respeito e de Xantipa e até mesmo o tinha ouvido na Assembléia. Sócrates nunca pensou em ser famoso e sua famosa ironia certamente lhe fez muitos inimigos por não compreenderem seus objetivos. Fato muito importante é que seus acusadores não queriam sua morte. Esperavam que voluntariamente escolhesse o exílio, o que de fato não fez. Uma coisa é certa: a sentença de morte não foi merecida mas, foi provocada por Sócrates.

      Seu julgamento se deu quatro anos depois da guerra de Atenas contra o Peloponeso, onde Atenas foi derrotada. Sócrates criticou severamente a democracia ateniense e o sistema religioso. Pesava-lhe também o fato de alguns dizerem que seus ex-discípulos haviam traído os atenienses. Sócrates corajosamente exaltou a virtude dos espartanos. Isso certamente enfureceu muitos dos seus contemporâneos. O povo estava cansado das derrotas ainda recentes e não teve disposição para analisar com mais profundidade a pessoa e obra do filósofo. Um de seus acusadores usa justamente o fato de, supostamente, seus ex-alunos serem causadores de enormes problemas a sociedade ateniense. Entre eles estão Terâmenes e Alcebíades. Cita também o fato de Sócrates ridicularizar cidadãos idosos e respeitados pela sua posição social tendo como público os jovens atenienses que não economizavam gargalhadas. O respeito dos jovens pelos mais velhos estava desaparecendo e isto era causado por Sócrates. Assim, apesar de sua vida moral correta, foi tido como um perigo ambulante.

      Mesmo com o discurso de defesa, onde se mostrou que Sócrates desempenhava suas funções religiosas publicamente, respeitava os deuses, apesar de dizer que havia uma entidade que lhe sussurrava ao ouvido, o que parecia então a criação de um novo deus, Sócrates foi condenado. O mesmo júri que foi ao seu favor diz que nos teatros os deuses eram ridicularizados, chamados de mentirosos e nenhum processo havia contra os que assim faziam. Aristófanes, diz tal júri, em suas obras descreve Hércules, Dionísio e Plutão como verdadeiros palhaços e nada foi feito em relação. Como pode Sócrates ter desprezo pelos deuses uma vez que confiou nas palavras do Oráculo de Delfos e foi em busca daquilo que tinha ouvido? Por último, o jurado diz que pelo fato dos jovens rirem das situações causadas pelo filósofo, isto não pode ser visto como corrupção dos mesmos. Como poderia ser corrupto um homem que ousou não fugir, demonstrando assim tamanho patriotismo? Esse fato histórico e triste deixá-nos algumas reflexões: (1) a incapacidade história momentânea que o homem tem de se avaliar e avaliar o que acontece ao seu redor; (2) ainda que legalmente correto há de se tomar cuidado para não exercer um parecer motivado pela emoção ou por questões particulares; (3) a facilidade de se afastar o problema (no caso Sócrates) invés de aspirar-se mudanças comportamentais. Parece-nos que na maioria das vezes grandes vultos da história são incompreendidos vindo a pagar caro por suas idéias.


Bernardo Rafael de Carvalho Pereira
Primeiro Período de Filosofia