O platonismo aparece como doutrina seletiva, seleção dos pretendentes, dos rivais. Toda coisa ou todo ser pretendem a certas qualidades. Trata-se de julgar sobre o bem-fundado ou sobre a legitimidade das pretensões. A Idéia é posta por Platão como o que possui uma qualidade primeiro (necessária e universalmente); ela deverá permitir, graça à provas, a determinar o que possui uma qualidade em segundo, terceiro, segundo a natureza da participação. Tal é a doutrina do julgamento. O pretendente legítimo, é o participante, aquele que possui em segundo, aquele cuja pretensão é validada pela Idéia. O platonismo é a Odisséia filosófica que continua no neoplatonismo. Ora ele afronta a sofística como seu inimigo, mas também como seu limite e seu duplo: porque ele pretende a tudo ou a não importa o que, o sofista arrisca fortemente a embaralhar a seleção, a perverter o julgamento.

      Esse problema tem sua fonte na cidade. Porque elas recusam toda transcendência imperial bárbara, as sociedades gregas, as cidades (mesmo no caso das tiranias) formam campos de imanência. Estes são preenchidos, povoados por sociedades de amigos, isto é, de livres rivais, cujas pretensões entram cada vez mais em um agôn emulante e se exercem nos domínios mais diversos: amor, atletismo, política, magistraturas. Um tal regime acarreta evidentemente uma importância determinante da opinião. Vemos isso particularmente no caso de Atenas e de sua democracia: autoctonia, philia, doxa são os três traços fundamentais, e as condições sob as quais nasce e se desenvolver a filosofia. A filosofia pode em espírito criticar esses traços, ultrapassa-los, corrigi-los, ela permanece indexada sobre eles. O filósofo grego se reclama de uma ordem imanente ao cosmos, como o mostrou Vernant. Ele se apresenta como o amigo da sabedoria (e não como um sábio à maneira oriental). Ele se propõe a «retificar», a assegurar as opiniões dos homens. São essas características que sobrevivem nas sociedades ocidentais, mesmo se elas aí recebem um novo sentido, e que explicam a permanência da filosofia na economia do nosso mundo democrático: campo de imanência do «capital», sociedade dos irmãos ou dos camaradas da qual cada revolução se reclama (e livre concorrência dos irmãos), reino da opinião.

      Mas o que Platão reprova à democracia ateniense, é que nela todo mundo pretende a não importa o que. Daí sua empresa de restaurar os critérios de seleção entre rivais. Será preciso erigir um novo tipo de transcendência, diferente da transcendência imperial ou mítica (ainda que Platão se sirva do mito dando a ele uma função especial). Será preciso inventar uma transcendência que se exerce e se encontra no próprio campo de imanência: tal é o sentido da teoria das Idéias. E a filosofia moderna não cessará de seguir Platão a esse respeito: reencontrar uma transcendência no seio do imanente como tal. O presente envenenado do platonismo é ter introduzido a transcendência na filosofia., ter dado à transcendência um sentido filosófico plausível (triunfo do julgamento de Deus). Esta empresa se choca com muitos paradoxos e aporias, que concernem precisamente ao estatuto da doxa (Teeteto), à natureza da amizade e do amor (Banquete), à irredutibilidade de uma imanência da Terra (Timeu).

      Toda reação contra o platonismo é um restabelecimento da imanência na sua extensão, e na sua pureza que interdita o retorno de um transcendente. A questão é de saber se uma tal reação abandona o projeto de seleção dos rivais, ou estabelece, ao contrário, como acreditavam Spinoza e Nietzsche, métodos de seleção completamente diferentes: estes não tratam sobre as pretensões como atos de transcendência, mas sobre a maneira pela qual o existente se preenche de imanência (o Eterno retorno como, como capacidade de alguma coisa ou qualquer um de retornar eternamente). A seleção não incide mais sobre a pretensão. Na verdade, só escapam ao platonismo as filosofias da pura imanência: dos Estóicos a Spinoza ou Nietzsche.


Gilles Deleuze

[Título] Crítica e Clínica. Tradução de Peter P. Pelbart S. Paulo: Editora 34, 1997.
Originalmente publicado em:
Nos Grecs et leurs modernes — les stratégies contemporaines de appropriation de l’antiquité. Textes réunis par Bárbara Cassin, Ed. du Seuil, 1992.
Republicado em Critique et clinique. Paris: Minuit, 1993.