Faz-se aqui a resenha do capítulo sétimo do livro Os deuses que não morrem, intitulado Revisando o Julgamento de Sócrates, de Herbert Salvador de Lima, publicado em 1996 pela editora Loyola. Neste capítulo, o autor reflete sobre o papel que Sócrates desempenhou não só na filosofia, mas na sociedade de seu tempo, a ponto de ter sido considerado perigoso para a ordem pública e, por isso, preso, julgado e condenado à morte.

        Lima inicia seu texto tecendo alguns comentários sobre o início da filosofia na Grécia, por volta do século VI a.C. com os pré-socráticos. Esses filósofos buscavam descobrir qual seria o elemento primordial da natureza, a arché panthon. Eram os chamados filósofos da physis, dos quais o autor cita Tales de Mileto, Anaximandro, Parmênides, entre outros. A partir de 450 a.C., ocorre um deslocamento no objeto da filosofia, ou seja, o centro de atenção dos filósofos deixa de ser a natureza para ser o homem. Entende-se então, que era inútil conhecer a physis sem antes conhecer o homem, uma vez que é por meio dos sentidos que o homem acede ao conhecimento, e se estes forem errôneos, nada se pode conhecer de verdadeiro. Estas questões foram levantadas, entre outros, pelos sofistas, cujo nome mais significativo é Protágoras, pais da pedagogia, que ensinavam mediante pagamento. É neste contexto que temos também a figura de Sócrates, que, assim como os sofistas, ensinava em público. O filósofo, contudo, não cobrava pelas aulas e, além disso, buscava o conhecimento, despertando os demais para a verdade de nada saberem. Sócrates opunha o discurso verdadeiro ao discurso forte, relativista dos sofistas. Com o seu método dialético, Sócrates aprofundou muito mais os conhecimentos sobre a moral e a verdade do que qualquer filósofo contemporâneo ou anterior a ele. O filósofo, porém, nada escreveu: tudo o que se sabe dele é contado por Platão, seu discípulo. Qual a sua importância para a filosofia? De acordo com Lima, Sócrates foi o incentivador da filosofia, especialmente considerando que ele foi o mestre de Platão, e este, o mestre de Aristóteles.
        Para Sócrates, comenta Lima, tudo que é imperfeito, é irreal, de modo que a realidade está somente na perfeição. Desse modo, há uma ilusão no indivíduo que crê que conhece: o filósofo era tido pelo oráculo como o homem mais sábio da Grécia justamente porque sabia não saber, diferentemente dos demais homens, iludidos de possuírem um conhecimento que não tinham. Para Sócrates, o conhecimento da verdade só poderia ser atingido por meio de uma técnica de educação pessoal e intelectual que lhe permitisse conhecer os universais, que estavam acima das coisas do mundo. A essa técnica, o filósofo chamou “dialética”: um processo de discussão que permitia o aperfeiçoamento das definições e levava o homem a alcançar a verdade. Esse processo estava baseado na ironia socrática, que levava o interlocutor a uma situação de aporia: a maiêutica consistia num processo de perguntas e respostas que desconstruia o conhecimento do interlocutor e o levava a admitir que não sabia o que afirmava saber. O método socrático muitas vezes despertava o ódio dos seus interlocutores.
        Segundo Lima, uma das maiores contribuições de Sócrates foi no campo da moral: para o filósofo, o simples conhecimento da verdade era suficiente para tornar o homem bom e justo. Desse modo, a posição de Sócrates revela uma idéia bastante otimista da condição humana, negligenciando a sua vontade. E será justamente por ensinar e viver a sua filosofia que, segundo Lima, o filósofo sofrerá o martírio.
Falando mais especificamente sobre o julgamento de Sócrates, o autor chama a atenção para o fato de que hoje nos escandalizemos com a condenação do filósofo, mas que, para o grego contemporâneo, os fatos eram vistos de forma diferente. Considerando-se o contexto histórico, político e jurídico do tempo, era perfeitamente possível uma condenação injusta ocorrer. Porém não foi esse o caso de Sócrates, pondera Lima. Sócrates, defende o autor, teve um julgamento justo dentro do contexto em que ocorreu: foi-lhe dada a oportunidade de se defender e teve a oportunidade de comutar a sua pena por outra. Além disso, seus acusadores eram cidadãos respeitáveis e pairava sobre o filósofo acusações de crimes que eram previstos pelas leis então vigentes. Assim, podemos considerar a condenação como não merecida, mas não como injusta, argumenta Lima. Segundo ele, Sócrates provocou a sua condenação por seu espírito crítico, sua ironia, e pelos fatos de sua vida, que testemunhavam contra ele. Apesar da nobreza de suas intenções, acabou por dar razões àqueles que o condenavam de corruptor da juventude e de descrer dos deuses (ainda que se saiba que não foram esses os verdadeiros motivos das acusações). Dado o contexto, quem poderia condenar ou absolver o réu em idênticas circunstâncias?, inquire Lima. Hoje, aos nossos olhos, a condenação de Sócrates parece uma injustiça, mas para o homem contemporâneo não o era. De fato, Jaeger (1979, p. 336), ao falar da importância das leis para o cidadão grego naquele tempo, coloca que

A lei é a expressão mais geral e concludente das normas válidas. Protágoras compara as leis ao ensino elementar da escrita, em que a criança deve aprender a não escrever fora das linhas. [...] Em linguagem jurídica, o castigo, que nos faz voltar à linha quando dela nos afastamos, é designado por euthyne – “correção”. [...]
No Estado ateniense, a lei era só o “rei”, como diz o verso de Píndaro, então muito citado; era também a escola do civismo. Essa idéia está muito longe do sentimento atual. A lei já não é uma descoberta de antigos e notáveis legisladores, mas sim uma criação de circunstâncias. Também em Atenas não tardou a sê-lo e nem sequer os especialistas podiam abarcá-la. Em nossos dias seria inconcebível que, no instante em que as portas da prisão se abriam diante de Sócrates para a fuga e a liberdade, lhe aparecessem as leis, como figuras vivas que o exortavam a permanecer fiel na hora da tentação, pois foram elas que o educaram e protegeram por toda a vida, e constituem o fundamento e o solo materno da sua existência. Com isto, exprime simplesmente o ideal do Estado jurídico de seu tempo.

        Isso nos ajuda a compreender a atitude dos atenienses e do próprio Sócrates diante do julgamento e da condenação. Nosso julgamento hoje seria influenciado pelo nosso contexto, que é muito diverso do contexto grego de há 25 séculos. O filósofo procurou testemunhar suas idéias e, assim, educar o povo ateniense, mais uma vez pela ironia em que era mestre.
Fechando seu texto, Lima simula a fala de duas testemunhas no julgamento do filósofo, uma de acusação e outra de absolvição, cada qual com argumentos válidos que justificam seu veredicto para o contexto do tempo em que o fato ocorreu.


Benedito Fernando Pereira
Quinto Período de Filosofia

REFERÊNCIA

JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução Artur M. Parreira. Lisboa: Aster, 1979.

LIMA, Herbert Salvador de. Revisando o julgamento de Sócrates. In: Os deuses que não morrem: ensaios de cultura grega. São Paulo: Loyola, 1996 pp. 117-134.