Paul Ricoeur (1913-2005) é reconhecido como um dos maiores nomes da Filosofia da segunda metade do século XX e dos inícios do século XXI. Trata-se de alguém que, a partir da fenomenologia, soube dialogar com as mais variadas correntes do pensamento filosófico de seu tempo, elaborando uma reflexão cada vez mais autônoma, de cunho hermenêutico. Além disso, não descartou em sua vasta produção intelectual o que chamou de fontes não-filosóficas da Filosofia, como o mito, a poesia, a religião, as conquistas da psicanálise. Sobretudo, interessou-se pelo fenômeno da linguagem, particularmente em sua forma narrativa; pela hermenêutica do símbolo que, em sua famosa sentença, sempre donne à penser; pelo problema/mistério do mal em suas várias conotações; por questões contemporâneas, em que se destacam aquelas políticas.
         Para que se possa conhecer um pouco melhor o modo de pensar de Paul Ricoeur, é conveniente que se atente a um símbolo da atividade filosófica, conforme ele a entendia. Para tanto, Ricoeur escolheu uma obra de Rembrandt intitulada Aristóteles contemplando um busto de Homero (RICOEUR, O único e o singular. São Paulo: Ed. UNESP,2002, p. 51-54). Aristóteles está representado, com roupas da época de Rembrandt, tocando um busto pétreo de Homero, o grande poeta grego. Para Ricoeur, o filósofo nunca começa do nada e também não começa da própria Filosofia: começa do não-filosófico, aqui, do poético. Este permanece como inalterável. O filósofo, ao contrário, vivo e portador de indumentária contemporânea, representa a própria Filosofia, sempre atual, sempre chamada a dar interpretações. O filósofo toca a estátua: sua prosa conceitual está ligada à poesia. Contudo, Aristóteles não contempla o busto de Homero: tocando-o, olha para além dele. Olha para algo que não é a própria Filosofia – a verdade ou o ser? Quem sabe?
         Pendurada à cintura de Aristóteles há uma medalha de Alexandre Magno, o conquistador de muitos povos, discípulo do Estagirita. Além de preceptor de Alexandre, Aristóteles foi um grande pensador da política, na qual se tornaria completa a ética. No pano de fundo da relação entre filosófico e não-filosófico está sempre presente o político, como aquela instância que proporciona que o discurso do poeta e do filósofo possa ter lugar na sociedade ordenada retamente. O filósofo não pode continuar sua reflexão sobre a palavra poética sem manter uma relação ativa com o âmbito político.
         Assim Ricoeur concebe o modo de se fazer Filosofia: ela precisa ser descentrada, em diálogo constante com o não-filosófico, sem deixar de lado a referência ao político. Sua produção filosófica enfatiza o sujeito humano, um sujeito que não é tomado como elemento central, como em Kant, mas aberto às várias alteridades. Por isso, pode seu pensamento ser considerado uma “filosofia do cogito ferido”, a partir de uma expressão do próprio autor no Prefácio de O si-mesmo como um outro (p. 22ss).
         Paul Ricoeur, além de tudo isso, foi um filósofo de confissão cristã protestante. Nunca escondeu sua pertença a esta tradição, como também nunca quis fazer uma “filosofia cristã”. Seu cristianismo é um “cristianismo de filósofo”. Seu pensamento toca várias questões de fronteira entre Filosofia e Teologia, como o mal, a culpabilidade, a esperança, a linguagem simbólica e narrativa (numa aplicação às narrativas bíblicas), porém ele permanece sempre filósofo. Não fez concessão alguma em nome da fé, ao contrário, desenvolveu uma reflexão rigorosamente racional, ainda que admitisse que assuntos de fé pudessem ser tratados também em chave filosófica. Sabia caminhar sobre duas pernas, ligado a suas duas fidelidades: à tradição grega e à bíblico-cristã.
         Ricoeur também se dedicou à hermenêutica bíblica que, segundo ele, funda-se na confluência entre “a crítica e a convicção”, entre a leitura rigorosamente científica e a leitura confessante do texto das Escrituras, sem confusão nem separação entre tais instâncias. Ricoeur não se fixa nas preocupações do método exegético histórico-crítico (como Bultmann), mas aposta no sentido do texto em si, que manifesta o sentido da existência humana à luz de Deus. Interpretar um texto bíblico significa para ele entrar no “mundo do texto”, compreendê-lo, possibilitando experiências novas “segundo as Escrituras”. Aqui está o núcleo mesmo de seu trabalho hermenêutico: o cruzamento entre o “mundo do texto” e o “mundo do leitor”.
         Ricoeur busca impedir que se cale a polifonia dos textos bíblicos em sua pluralidade de gêneros literários, de perspectivas de sentido, de concepções antropológicas e teológicas. Um esquema único não pode abarcar toda essa complexidade. Também ele se levanta contra a tendência de se reduzir a Escritura a expressões puramente querigmáticas, desprovidas de formas narrativas. Defende que a análise literária dos textos sagrados é indispensável ao seu entendimento teológico.
         Pode-se, certamente, afirmar que Ricoeur não deseja submeter os textos bíblicos às suas teorias hermenêuticas. O que faz é dialogar como filósofo e como crente com essa veneranda tradição, pondo elementos hermenêuticos a serviço inteligibilidade da fé.
Este é Paul Ricoeur: um filósofo e não teólogo; um cristão filósofo e não um filósofo cristão; um filósofo hermeneuta e não um exegeta bíblico; alguém que trabalha “nos limites da simples razão”, mas que deseja levar em conta toda a razão, todos os campos em que ela pode atuar; um filósofo que não rejeita o não-filosófico ou o pré-filosófico; um pensador que professa a fé cristã e que não abandona o rigor do método próprio da Filosofia.
         Pelo que até aqui se viu, Ricoeur tem sua contribuição a dar no campo do pensar o fenômeno religioso a partir da abordagem hermenêutica. Revela outrossim a riqueza dos temas situados nas fronteiras entre Teologia e Filosofia, fronteiras que precisam ser guardadas, mas cuja interpenetração respeitosa não deixa de ser fecunda e produtiva.


[Prof. Pe. Juliano de Almeida Oliveira]
Coordenador de curso de Filosofia – Facapa