O termo “moral”, que significa originalmente costume seguido pela maioria de uma dada sociedade, tem atualmente conotação embelezadora. “Imortal” não é um sujeito que se recusa a seguir determinados costumes, (por exemplo: usar gravata), mas um sujeito que comete atos feios. E muitas vezes tais atos têm a ver com o sexo. Isto porque os costumes relativos ao sexo são os mais embelezados. O termo “saúde”, que significa originalmente “salvação”, passa a significar algo como “normalidade”. “Moral sadia” é, pois, atualmente o modelo para um comportamento, (principalmente sexual), que espelhe da maneira mais perfeita possível o comportamento normal da sociedade. É que o comportamento médio da sociedade é considerado ideal e norma.

       A premissa atual do comportamento sexual “normal”, (isto é: normalizado), é esta: existem dois sexos, nitidamente separados um do outro, cada qual com seu papel na sociedade, e que tentem para se unirem e formarem pares permanentes. A premissa não se baseia em fatos observáveis, a observação diz isto: embora existam dois sexos, não são nitidamente separados. Em toda fêmea há elementos femininos. Os papéis sociais dos dois sexos são fluidos e mal definidos. Os dois sexos tendem não a penas a formarem pares permanentes, mas também pares transitórios, e grupos polígamos mais ou menos passageiros. Estes são os fatos observáveis.

       A “moral sadia” escolhe entre os fatos os que devem ser, (os “sadios” e “sagrados”), e reprime os que não devem ser, (os “imortais” e “feios”). Com tal escolha, a moral normaliza os fatos e empobrece o repertório do comportamento. É esta a função da moral: servir de triagem. Mas, sendo obra humana, não funciona perfeitamente. Não consegue eliminar os fatos reprimidos. Consegue apenas deturpa-los.

       Há atualmente, como se sabe, crise da moral sadia. Isto pode significar duas coisas. Pode significar que a peneira moral atual esta sendo substituída por outra, (possivelmente de buracos maiores). E pode significar que não haverá mais peneira. Em outros termos: ou transvaloração dos valores, ou desvaloração dos valores. Somente o futuro mostrará qual das duas alternativas será o caso.

       Uma coisa é certa: o empobrecimento do nosso repertório pela moral sadia é uma pena. Homem nenhum pode realizar-se plenamente nos papeis impostos pela moral, e, com ênfase ainda maior, mulher humana. Daí o movimento da libertação feminina. Possivelmente o termo “”sadio”" deveria ser redefinido para significar “”salvação”" novamente?


[Vilém Flusser]
Publicado originalmente em “Folha de São Paulo” 08/03/1972