Primeiros Diálogos: em que medida se pode falar em uma “filosofia” oriental?

      O Grupo de Estudos em Filosofia Oriental, que iniciou suas atividades no último dia 09 de setembro informa os conteúdos de suas discussões. Nos dois primeiros encontros discutiu-se a pertinência de se falar em “Filosofia” Oriental. Foram levantadas três maneiras distintas e possíveis de se apreender o Oriente a partir da nossa realidade atual. a) Aquele Oriente formado pelos países asiáticos que vêm tomando frente em termos de desenvolvimento tecnológico e capitalista. b) O Oriente vinculado às antigas tradições culturais e religiosas que são milenares. c) O Oriente que cada pessoa tem internalizado de acordo com suas próprias vivências e contatos culturais a partir de sua história, o que forma uma imagem idealizada que se desdobra em interpretações individuais e subjetivas do que seja “Oriente”.
      No Oriente filosofia se mistura com religião, sendo difícil pensar as duas coisas separadamente. Por isso seria melhor falar em “sabedoria” oriental do que em “filosofia” oriental, propriamente dita como nos moldes de pensamento racional especulativo de origem grega que trouxe à chamada cultura de Civilização Ocidental. “Filosofia” oriental remete às diversas formas de disciplinas do conhecimento da realidade (tattwa-vidyâ-shâstra), e essa realidade é sempre transcendental. Ela seria então mais um “modo de vida” do que o exercício do pensamento racional. Considerando-se que existe uma realidade transcendente, a “filosofia” hindu, por exemplo, seria um modo de se relacionar com ela. Existe na “filosofia” oriental uma preocupação com o destino final e último da humanidade, o que é encarado não através do equacionamento da vida social na cidade (polis), mas pela proposição de uma ciência do Si-mesmo (átma-vidyâ).
      A dicotomia entre Ocidente e Oriente remete ao nascimento da própria idéia de antagonismo entre civilização e barbárie a partir da cultura grega , ao referir-se àqueles que “balbuciam” (barbarophônon) com dificuldade a sua própria língua, subjugados pelos desejos que envolvem livremente suas almas e sem colocar qualquer disciplina que o controle razoável (da razão) deveria garantir à convivência harmoniosa entre homens. Nas guerras pérsicas os orientais seriam homens faustosos e movidos unicamente pelos instintos e sem o uso da razão como disciplina (bárbaros), enquanto os gregos com sua capacidade de conhecimento e diálogo razoável seriam os virtuosos “civilizados”. Tomemos como exemplo o filme recente intitulado “300″ que é um relato da batalha das termópilas no qual o ator brasileiro Rodrigo Santoro faz o papel do rei Xerxes da Pérsia. Vemos através do filme como a ideologia de ver os orientais como “bárbaros” e inferiores segue seu curso até hoje, um preconceito que se formou na esteira da nossa civilização ocidental preocupada sempre mais em conquistar e colonizar os outros do que buscar uma união (religare) interior com o Absoluto, como acontece nas tradições da sabedoria oriental. Por outro lado o interesse pelas culturas religioso-filosóficas tradicionais do oriente cresce cada vez mais no ocidente, então é preciso estudar.
      Na medida em que é fundamental conhecer a chamada “filosofia” oriental para falar adequadamente sobre ela, mesmo levando em consideração que o método de estudar seus textos tradicionais, o que nos propomos fazer no nosso Grupo de Estudos, é diferente e bastante distante das práticas que aquelas diversas tradições apresentam, oferecemos nos nossos primeiros encontros alguns extratos de pensamentos de Jung sobre a relação entre as culturas Ocidental e Oriental. Apesar do nosso Grupo de Estudos não tomar partido, como Jung o fez em 1935, nas contradições entre as duas culturas, achamos importante conhecer as opiniões do eminente psiquiatra suíço. Partindo da idéia inicial de uma diferença substancial entre ambas e com base no diálogo sempre constante entre Ocidente e Oriente desde a origem histórica da chamada civilização ocidental (Grécia) até as especificidades atuais, nosso Grupo de Estudos busca compreender as aproximações e distanciamentos segundo uma visão de influências culturais recíprocas.

Biblioteca Alcântara Silveira
Rua Comendador José Garcia, 396, sala 202. Fone: 35 9984-6314.
GRUPO DE ESTUDOS EM FILOSOFIA ORIENTAL

JUNG, C.G. Psicologia e Religião Oriental. Obras Completas de C.G. Jung, V. XI 5, Vozes, RJ, 1982.


Extratos

O conflito entre ciência e religião é a enfermidade do ocidente. p.2.

Um enunciado filosófico é o produto de uma determinada personalidade que vive em época bem determinada e num determinado lugar. Não é fruto de um processo puramente lógico e impessoal. Sob esse aspecto, o enunciado filosófico é antes de tudo subjetivo. Que ele seja válido ou não subjetivamente depende do maior ou menos número de pessoas que pensem do mesmo modo p.4.

No Oriente, o espírito é um princípio cósmico, a existência do ser em geral, ao passo que no Ocidente chegamos à conclusão de que o espírito é a condição essencial para o conhecimento e, por isso, também para a existência do mundo enquanto representação e idéia. p.5.

Se o mundo não assume a forma de uma imagem psíquica, é praticamente como se ele não existisse. Este é um fato que o Ocidente não se deu plenamente conta, com raras exceções como Schopenhauer. Mas Schopenhauer, como se sabe, foi influenciado pelo budismo e pelos upanishads. p.6.

A posição Oriental idiotiza o homem Ocidental e vice-versa. Não se pode ser ao mesmo tempo um bom cristão e seu próprio redentor, do mesmo modo que não se pode ser ao mesmo tempo um budista e adorar a Deus. p.9.

Em vez de aprender de cor as técnicas espirituais do Oriente e querer imitá-las, numa atitude forçada, de maneira cristã – Imitatio Christi -, muito mais importante seria procurar ver se não existe no inconsciente uma tendência introvertida que se assemelhe ao princípio espiritual básico do Oriente. p.9.

A meu ver, teremos aprendido alguma coisa com o Oriente no dia em que entendermos que nossa alma possui em si riquezas suficientes que nos dispensam de fecundá-la com elementos tomados de fora, e em que nos sentirmos capazes de desenvolver-nos por nossos próprios meios, com ou sem a graça de Deus. p.9.

Se quisermos que nossa atitude seja honesta, isto é, radicada em nossa própria história, é preciso apropriarmo-nos desta atitude, com plena consciência dos valores cristãos e conscientes do conflito que existe entre estes valores e a atitude introvertida do Oriente. É a partir de dentro que devemos atingir os valores orientais e procura-los dentro de nós mesmos, e não a partir de fora. p.10.

Não há a menor dúvida de que as formas superiores da ioga, ao procurar atingir o Samadhi, têm como finalidade alcançar um estado espiritual em que o eu se ache praticamente dissolvido. p. 11.

A psique e sua natureza são bastante reais (para o Oriente). p. 12.

… a afirmação de que o homem traz em si a possibilidade da auto-redenção é uma blasfêmia manifesta (para o Ocidente Cristão). p. 14.

No Ocidente – o ponto de vista consciente é que decide arbitrariamente contra o inconsciente, porqu tudo quanto procede do interior do homem é, por preconceito, considerado como algo de inferior ou não inteiramente correto. p.15.

Nossa convicção absoluta de que no intelecto não se encontra nada que não tenha sido apreendido, primeiramente, pelos sentidos, que constitui a divisa da extroversão ocidental, deve ter um fundamento semelhante. p.17.

Esta identidade (do indivíduo com o inconsciente através da ioga) é o equivalente oriental da nossa idolatria ocidental da objetividade absoluta, da orientação maquinal para um determinado fim, para uma idéia ou objeto, mesmo com o risco de perder todo o vestígio de vida interior. Do ponto de vista oriental esta objetividade é apavorante, é sinônimo de identidade completa com o sansara; para o Ocidente, pelo contrário, o samadhi outra coisa não é senão um estado onírico sem importância. No oriente o homem interior sempre exerceu sobre o homem exterior um poder de tal natureza que o mundo nunca teve oportunidade de separá-lo de suas raízes profundas. No Ocidente, pelo contrário, o homem exterior sempre esteve de tal modo no primeiro plano, que se alienou de sua essência mais íntima. p. 18.

Um cientista se esquece com demasiada facilidade que a maneira objetiva de tratar um tema pode ferir seus valores emocionais em proporção indesculpável. p. 19.

O psicólogo que estuda um texto sagrado pelo menos deve ter a consciência de que tal matéria representa um valor religioso e filosófico inestimável que não deveria ser violado por mãos profanas. p. 20.

O homem ocidental conceberia este fato da seguinte maneira: Aprende bem tua tarefa, repete-a em seguida, e te libertarás. É isto o que acontece, precisamente, as mais das vezes com os europeus que praticam a ioga. Eles tendem a fazê-lo de forma extrovertida esquecendo-se de orientar o seu espírito para dentro, o que é essencial nesta doutrina. p. 26.

Mas é impossível ser um bom cristão na fé, na moral e no desempenho intelectual e, ao mesmo tempo, praticar honestamente a ioga. p. 26.

Mas praticar ioga em Mayfair ou na Fifth Avenue ou em outro lugar qualquer ao alcance do telefone, é uma mentira espiritual. p. 26.