Quando se diz que o mel é doce, não se pretende significar que ele percebe a doçura, mas que causa a sensação de doçura. A sensação, ao invés, é própria à alma: seria um erro misturar qualquer coisa de corpóreo à idéia do conhecimento sensível. A sensação de dor, por exemplo, é aparentemente experimentada pelo corpo; na realidade, porém, é a alma que sofre através do corpo.
       Como se deve entender a influência do corpo sobre a alma? Pode um processo corporal atuar sobre a alma e provocar uma sensação? Dir-se-á que a ação do corpo sobre a alma é coisa manifesta; todavia, um exame mais atento da questão parece sugerir a impossibilidade de um tal influxo. Mais ainda: tal influxo parece inteiramente absurdo. Logo, a alma não pode sofrer nenhuma influência da parte do corpo, sob pena de ficar sujeita a ele. Por conseguinte, os números presentes na alma não podem ser produzidos pelo corpo. Donde se segue que, ou o nosso problema é insolúvel, ou a sensação deve ser produzida pela alma.
       É óbvio que a sensação pressupõe certas condições corporais. A sensação como tal, porém, só pode ser produzida pela alma. A união entre corpo e alma não é uma relação de reciprocidade; antes, a união é tal que a alma observa o corpo e, ao mesmo tempo, produz alguma coisa independentemente da influência do corpo. De forma que, toda vez que um processo material provoca uma mudança no corpo, a alma percebe-a de maneira ativa e, percebendo-a, produz uma sensação.
       O processo de sensação realiza-se de seguinte maneira: suponhamos que o meu ouvido seja atingido por uma vibração do ar, causando uma modificação no órgão auditivo. A alma logo se volta para esta modificação produzindo a sensação do som, o som ouvido. Este já é de natureza espiritual e pertence à segunda classe de sons, que é superior à primeira. A partir daqui, porém, é mister proceder com muita cautela, pois já chegamos ao terceiro grau e verificamos que a sensação é ato do próprio pensamento. Embora se costume dizer que percebemos um verso com seu respectivo ritmo, este modo de falar não corresponde à realidade. O que ouvimos não é um verso, e nem mesmo uma palavra, mas simples sucessão de sílabas. É pela memória que apreendemos o verso em sua integridade. A sílaba é apenas um som de certa duração e composto de três elementos: o inicial, o médio e o final. Ao declarar que ouço uma sílaba longa não quero dizer senão que no fim da sensação a minha memória continua a recordar-lhe o começo, o que a capacita a compor a sensação. Isto vale até mesmo para a mais breve das sílabas: também ela tem uma duração, ou seja, um começo, um meio e um fim. Ora, é indiscutível que a memória faz parte do pensar puro. Tudo isso nos permite ver, desde já, o grande número de elementos que a alma introduz na sensação, visto que não somente a mede, como até mesmo a produz. Do mesmo modo como os olhos coordenam a multiplicidade dos objetos distribuídos no espaço, reunindo-os num só campo visual e enfeixando-os num só ato de visão, assim a memória – “esta luz dos espaços temporais” – procede à coordenação de toda uma seqüência de momentos que de outro modo se dissipariam. O verso “Deus creator omnium” não poderia existir como sensação independentemente de um espírito. Vê-se, pois, que mesmo no grau mais ínfimo do conhecimento a alma se mostra superior ao corpo.

A interioridade do pensamento

       Suponhamos que um mestre queira explicar aos seus alunos o sentido de um vocábulo designativo de uma coisa sensível, por exemplo, da palavra “saraballae”. Ouvida a explicação, o aluno terá aprendido que “saraballae” significa “coifa”, suposto que saiba o que se deve entender por coifa, ou melhor: o que é uma cabeça e o que é uma coifa. Mas o que é, exatamente, uma coifa? O único meio de explicá-lo a quem não o sabe é mostrar-lhe a coisa designada por esse termo: uma coifa concreta. Não são pois as palavras, mas as próprias experiências sensíveis que nos levam ao conhecimento das coisas. As palavras servem apenas para trazer à lembrança alguma experiência prévia. Suponhamos, ainda, que no intuito de comunicar certo conhecimento ao aluno, o professor lhe proponha uma proposição de sentido bem determinado, e que ele a compreenda. Poder-se-á dizer, nesse caso, que tal saber lhe foi realmente transmitido? É evidente que o aluno deve ter possuído um conhecimento prévio do significado das palavras empregadas; do contrário o sentido da frase lhe ficaria oculto. (…) O responder não é simples repetição daquilo que lhe foi ditado. Responder é tirar do interior do espírito o que ali se encontre em estado latente, ou, em outras palavras, é reagir positivamente a um estímulo externo. Aquele que responde não sofre nem recebe, mas age e produz.
       Donde a conclusão geral e evidente – não obstante a sua formulação paradoxal: nunca aprendemos. Nada se aprende. O que não quer dizer que o ensino seja inútil, mas sim que ele é algo inteiramente diverso do que se costuma supor. Esta conclusão paradoxal significa que aquilo que o corpo não pode dar ao pensamento, o pensamento não pode dá-lo a si mesmo. A experiência pensante é adquirida paralelamente à experiência sensível. Fora da alma há agentes estimuladores ou admoestadores e sinais; a espontaneidade da alma permanece intacta, pois ela se apropria destes sinais e os interpreta: é do seu próprio interior que ela tira a substância do que aparentemente lhe vem de fora.

Cf. BOEHNER, Philotheus & GILSON, Etienne.
História da Filosofia Cristã: Petrópolis/RJ: Vozes, 2000, p. 158-162.