Faz-se aqui a resenha do livro Cultura, um conceito antropológico, de Roque de Barros Laraia, já em sua 17ª edição pela Jorge Zahar Editor, de 2004. Graduado em História, pela UFMG, o autor possui especialização em Teoria e Pesquisa em Antropologia Social pela UFRJ, doutorado em Sociologia, pela USP, e pós-doutorado em Antropologia pela University of Sussex, da Inglaterra. Professor titular da Universidade Católica de Goiás e professor emérito da Universidade de Brasília, Roque Laraia é consultor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, membro do Conselho Nacional de Imigração, presidente interino da FUNAI, assessor da CAPES e do CNPq e consultor da Companhia Vale do Rio Doce. Autor de vários artigos e livros, Laraia é um dos maiores nomes nas áreas da Antropologia e Sociologia no Brasil.

Neste texto, o autor procura apresentar ao leitor uma visão da cultura pelo viés da Antropologia. O livro está dividido em duas partes: a primeira trata da natureza da cultura, e a segunda dos mecanismos de funcionamento desta.
Inicialmente, o autor discute a questão da unidade biológica do homem em oposição à sua diversidade cultural, tema que divide os pesquisadores ainda hoje. Laraia cita uma série de exemplos de autores de todos os tempos, como Heródoto, José de Anchieta e Montaigne, que observaram e descreveram os diferentes costumes dos povos que visitaram, no intuito de explicitar que as diferenças comportamentais se devem às diferentes concepções de mundo desses povos, e não somente à sua biologia ou ao seu meio ambiente. Segundo o autor, as diferenças culturais não se devem a fatores genéticos, mas a um processo de aprendizado que se faz socialmente: a endoculturação. E, embora o meio ambiente influencie o comportamento dos povos, não é determinante dele, uma vez que há culturas diferentes ocupando o mesmo espaço geográfico. Laraia refuta, assim, tanto o determinismo genético quanto o geográfico: a cultura se dá não como fruto das limitações biológicas e geográficas, mas pela superação dessas limitações, como o resultado do domínio do meio pelo homem.
Em seguida, Laraia expõe os antecedentes históricos do conceito de cultura. Segundo o autor, o termo cultura foi definido pela primeira vez por Eduard Taylor como um conjunto complexo de conhecimentos, crenças, artes, moral, leis e costumes adquiridos pelo homem no seu convívio social. A cultura, desse modo, se caracteriza como uma possibilidade de realização humana que se aprende, não sendo inata nos homens.
A idéia de cultura, porém, já vinha sendo usada há mais tempo. John Locke, por exemplo, já havia dito que os homens aprendem a cultura, deixando de lado a teoria das idéias inatas. Segundo ele, não há regra ou princípio de moralidade que seja comum a toda a humanidade. Também o antropólogo Marvin Harris dizia que nenhuma ordem social é baseada em verdades inatas. Além deles, Jacques Turgot e Jean-Jacques Rousseau afirmavam a capacidade de aprendizagem social do homem.
Segundo Laraia, as definições de Taylor em lugar de ampliar os limites do conceito de cultura, serviram apenas para estabelecer certa confusão entre os estudiosos da área, uma vez que era uma definição muito extensa em termos de objetos que abarcaria. Em 1917, Kroeber publica um artigo no qual coloca que o aprendizado social desempenha um papel muito mais importante do que a transmissão genética na formação do ser humano. A partir de então, temos um afastamento sempre crescente entre o cultural e o natural nos estudos do desenvolvimento humano. Para Laraia, de fato, o homem se diferencia dos animais pela sua capacidade de comunicação, de aprendizado e de construção de instrumentos: essas são as ferramentas da cultura. A Antropologia moderna tem se preocupado com a reconstrução conceitual de cultura, com a reconstrução do conceito de cultura.
Taylor, segundo Laraia, demonstra que a cultura pode ser objeto de um estudo sistemático, uma vez que o fenômeno cultural é também um fenômeno natural que tem causas e efeitos passíveis de estudo. Taylor, desafiando essa noção de centralidade do homem na natureza, afirma a igualdade da natureza humana em todas as condições, igualdade que pode ser estudada por meio da comparação entre as raças. Taylor se mostra mais preocupado com a igualdade que há entre os homens do que com sua diversidade cultural: esta seria o resultado da desigualdade de estágios do processo evolutivo do ser humano, o que mostra a influencia do evolucionismo em suas teorias. Assim, para ele, é tarefa da Antropologia estabelecer uma escala de civilização, partindo das mais “evoluídas” (as européias), até as mais “atrasadas” (as tribos selvagens). Essas idéias foram criticadas por Stocking, porque deixam de lado a noção de relativismo cultural: a unidade da espécie humana só pode ser entendida devido à diversidade de culturas, o que levaria ao entendimento da cultura como uma evolução multilinear.
A visão evolucionista será criticada também por Franz Boas. Segundo ele, a Antropologia deve ser responsável pela reconstrução da história de povos e regiões determinados, e pela comparação da vida social de diferentes povos cujo desenvolvimento segue as mesmas leis. Boas insiste na necessidade de se comprovarem os dados coletados. O autor propõe que se realizem investigações históricas para compreender as condições psicológicas e ambientais que proporcionaram o desenvolvimento cultural de um povo. Segundo Boas, essas investigações são as únicas capazes de descobrir a origem dos traços culturais e interpretá-los de modo a conhecer o seu papel na formação da sociedade estudada. São os eventos históricos que determinam o desenvolvimento da cultura.
Kroeber mostra que é a cultura que diferencia o homem dos animais e o coloca acima até mesmo de suas limitações orgânicas. O autor procura evitar a confusão que ainda existe em seu tempo, entre o orgânico e o natural: o homem, na condição de animal, precisa satisfazer certas necessidades vitais, mas a maneira como vai satisfazê-las é culturalmente aprendida. A diversidade cultural nos mostra que há muitos modos diferentes de se fazer as mesmas coisas. Por isso, segundo ele, o ser humano é predominantemente cultural, e não animal, no sentido orgânico.
Laraia nos diz que o homem, como parte do reino animal, também está sujeito ao processo de evolução e influenciação do meio em que vive, mas que, como possuidor de inteligência, ele evolui principalmente pelo aprendizado. É devido à sua capacidade de aprender que o homem conseguiu sobreviver às condições às quais esteve exposto, e o fez sem que fosse preciso transformar-se anatomicamente: o homem aprendeu a transformar o meio. Além disso, o desenvolvimento da civilização é um processo cumulativo: à medida que progride, o homem soma os conhecimentos novos aos antigos. Com os animais, ao contrário, a evolução ocorre principalmente no aspecto físico, com a substituição de uma habilidade ou característica por outra.
Segundo Kroeber, com a superação do biológico, o homem conseguiu, de certa forma, libertar-se da natureza, dominando-a, e fazendo de todo o planeta o seu habitat.
Como conclusão do capítulo, Laraia observa que também não basta que a natureza crie indivíduos com altas capacidades, se estes não tiverem as condições culturais necessárias para o seu pleno desenvolvimento. O indivíduo, para se desenvolver, depende do capital cultural acumulado pelas gerações da sociedade em que vive.
Falando das origens das culturas, Laraia coloca alguns fatores que proporcionaram o seu aparecimento entre os homens: o desenvolvimento cerebral, a habilidade manual, o bipedismo e a simbolização marcam esse processo. Segundo o autor, essa evolução não ocorreu em saltos, mas ao longo de eras de contínuo burilamento.
Modernamente, várias são as teorias sobre a cultura. Para Roger Keesing, cultura é um sistema adaptativo que envolve tecnologia, modos de organização econômica e política, e religião. Segundo essa concepção, a evolução cultural é um processo de adaptação correspondente à seleção natural. Keesing também se refere às teorias idealistas de cultura, sendo que uma abordagem vê a cultura como um sistema cognitivo, outra, como um estrutural, e uma última, como um sistema simbólico.
Na segunda parte do livro, Laraia mostra como a cultura molda os indivíduos dentro do grupo social. Segundo o autor, a cultura condiciona a visão de mundo do ser humano, pois o molda segundo certos valores e crenças específicos passados de geração em geração. Essa adaptação se faz sentir em todos os âmbitos da vida de cada indivíduo. A cultura também influi no campo biológico do indivíduo, principalmente por meio da ação psicológica que exerce. Laraia coloca ainda que, embora os homens estejam inseridos em uma dada cultura, nenhum é capaz de participar de todos os elementos dela.
Para encerrar, o autor explica que toda cultura tem um modo de organização que lhe é próprio, e evolui num processo contínuo, tanto por mecanismos internos, quanto pelo contato com outras culturas.
A leitura deste livro mostrou-se bastante esclarecedora no tocante à história e à visão antropológica de cultura. Com uma linguagem acessível, o autor conseguiu em poucas páginas traçar um panorama bastante amplo dos aspectos principais dos conceitos antigos e modernos de cultura e uma explanação bastante interessante das visões que os pesquisadores de ontem e de hoje têm da diversidade cultural do homem. É por meio da cultura que uma sociedade se organiza e cria sua história, atuando no mundo e transformando-o em sua casa.


Benedito Fernando Pereira
Licenciado em Letras (Univás), Bacharel em Filosofia (FACAPA), graduando em História (Univás) e pós-graduando em Ensino de Filosofia (FACAPA).

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 17. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.