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A Bolsa e a vida

Posted By Bernardo On 6 de dezembro de 2009 @ 15:23 In Resenha | No Comments

GOFF, Jacques Le. A Bolsa e a vida: economia e religião na Idade Média. Tradução de Pedro Jordão. Lisboa: Teorema, 1987.

      A obra de Le Goff é um clássico sobre o cotidiano na idade média. Focaliza-se principalmente a economia e a religiosidade do homem medievo debaixo da autoridade da Igreja. O autor é tido como um dos maiores medievalistas. Nesta obra percebe-se o contexto confuso em que a sociedade vivia, tendo seus direitos, deveres e perspectivas ditados pelo poder da igreja que fazia de homens e mulheres pessoas sem nenhuma chance de autonomia nas diversas áreas da vida humana.

      Segundo o autor “Num mundo em que o dinheiro (nummus em latim) é ‘Deus’; em que o ‘dinheiro’ é vencedor, o dinheiro é rei, o dinheiro é soberano (nummus vincit, nummus regnat, nummus imperat)” (p.8), se desenvolve o drama medieval com todas as suas implicações, trazendo transtornos físicos e emocionais capazes de atormentar psicologicamente o homem de então e deixando implícita a ambigüidade do poder eclesiástico.
      Os séculos X a XII constituem-se o recorte temporal da chamada idade das trevas. Durante esse período a questão da usura permeia a mente da sociedade principalmente nos séculos supracitados. A usura seria por muitos séculos um mal combatido pelo clero.
      A obra divide-se em seis capítulos. No segundo, desenvolve-se a ideia do inferno que é o meio principal pelo qual o domínio se dá na vida do homem medieval. A justificativa de tal ideia provém de textos bíblicos, tanto do Antigo como do Novo Testamento. A penitência é desenvolvida chegando ao ponto de se confeccionar em tabelas penitenciais: “Durante a idade média, as tabelas de penitência consoante a natureza dos actos pecaminosos estavam consignadas em penitenciais” [grifo do autor] (p. 10). A citação do inferno como condenação pelo pecado da usura permeia os demais capítulos: “Sim, a usura só podia ter um destino: o inferno” (p.37). Dessa maneira o homem da época vivia amedrontado, acuado e sob forte pressão.
      Um dos meios desenvolvidos para a comunicação das ideias divinas, ditadas pela igreja, foi o exemplum. Através dessas histórias, os ouvintes eram informados sobre o destino final do usurário. Estava lançada a grande questão da época quanto ao enriquecimento ilícito: o cidadão deveria escolher entre a bolsa e a vida, ou seja , entre os bens materiais, prazerosos e efêmeros ou a estada concreta e eternamente cheia de sofrimentos terríveis no inferno.
      O capítulo terceiro dedica-se a justificar o pecado da usura, que era o pior dos pecados capitais. Se um homem roubasse outro homem poderia ser punido pelas leis civis e até mesmo perdoado pela igreja através da confissão. Mas o que fazer com aquele que conscientemente e apesar de todos os avisos roubasse a Deus? O usurário era um roubador do tempo que pertencia a Deus. Ele vendia aquilo que não produzia. O ócio e o enriquecimento eram incompatíveis. Nessa época a figura artística do usurário estigmatizou-se na figura do Judeu, uma das grandes injustiças da história em relação aos descendentes de Abraão.
      A pesquisa realizada por Le Goff apresenta em detalhes a vida na Idade Média. Toda manipulação feita pela Igreja para interferir na consciência das pessoas é comprovada pelos exemplos e citações das obras pesquisadas. Fica evidente que muitos dogmas da Igreja católica foram criados não por uma piedade religiosa ou pela autoridade das Escrituras, mas sim por uma necessidade econômica para o exercício do poder. Exemplos citados são a confissão auricular e o purgatório. O primeiro com a intenção de cada vez mais descobrir e controlar a proliferação da usura e o segundo para resolver a questão dos usurários que colaboravam financeiramente com a igreja, aliviando assim seu sofrimento eterno e dando-lhe uma nova chance após a morte.
      O capítulo final descreve a situação incômoda que vivia a esposa do usurário. O que fazer com ela é a pergunta que se fazia. Duas possibilidades havia: abandonar o marido e salvar sua alma ou pagar literalmente a Igreja após a morte dele, entregando assim toda a fortuna arrecadada pelo marido de forma generosa e piedosa. A discriminação às mulheres de usurários era notória: “Ouvi falar duma mulherzinha que tinha como esposo um usurário” (pg.107), iniciava-se uma das histórias amedrontadoras narradas pelos padres. Há contudo relatos de mulheres que se negaram a entregar seus bens a Igreja como é o caso de Étienne de Bourbon.
      O texto de Le Goff é rico em citações e referências de documentos oficiais antigos, porém peca ao omitir em algumas delas a origem. Ao tratar dos assuntos expostos nos capítulos, Le Goff parece ser prolixo nos detalhes, retornando em cada capítulo a assuntos já tratados para depois abordar o assunto principal. Isso certamente causa um desgaste ao leitor. Peca o autor em não oferecer ao leitor um índice e divisões sistematizadas, seja no início ou no final da obra, tornando a leitura solta no ar, sem uma referência inicial para pautar os assuntos tratados.
      De maneira alguma esses detalhes empobrecem a pesquisa do autor que é ampla e detalhada. A situação econômica, o medo da Igreja em perder o poder sobre a vida do povo, as artimanhas do clero, a situação lamentável em que viviam os homens e mulheres desprovidos de direitos e cheios de deveres abusivos, fica evidente no livro. Para se conhecer um pouco desse momento histórico é imprescindível a leitura desta obra.


Bernardo Rafael de Carvalho Pereira
Segundo Período de Filosofia


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